sábado, 22 de fevereiro de 2014

A sabedoria num tubo de ensaio


Hoje, há poucos temas que tenham tornado-se tão delicados quanto a moral. Salvo em circunstâncias especiais, admite-se que toquemos nesse assunto apenas indiretamente, raramente como o tema principal de livros ou conversas. E, caso realmente tragamos o assunto à tona, se for em forma de livro, recebe o rótulo de auto-ajuda e, se amigo numa roda de papo, a alcunha de moralista.

Mas, como dito acima, em algumas circunstâncias especiais, podemos tratá-la sem problemas. Dois campos têm essa permissão: as teorias sociais e as ciências. Tudo bem que as duas nem sempre levem a sério o que a outra diz, mas, tratando o assunto de forma mais geral, podemos dizer que essas duas áreas têm o respeito de muita gente – basta assistir ao noticiário para ver quantas vezes a tevê não chama esses profissionais para dar uma credibilidade extra a alguma afirmação. No campo das teorias sociais, a moral pode ser tratada, por exemplo, pelo marxismo, que explica que a ganância competitiva nas empresas é uma consequência do sistema capitalista ou pela sociologia, que explica que as injustiças sofridas pelas mulheres são resultado da cultura patriarcal que ainda nos cerca. Já nas ciências, a abordagem é, como convém, um pouco mais concreta, com medições, exames de sangue e saliva. Elas explicam que a maior agressividade dos homens é causada pela testosterona e que traços como uma melancolia pessimista podem ser motivadas pela falta ou excesso de algum neurotransmissor.

Apesar do saudável debate ocorrendo nas ciências e teorias sociais, acredito que um tipo diferente de discussão moral não tem recebido a devida atenção de todos, a sabedoria. Sim, pois me parece que nem a sociologia nem a psicologia evolutiva ajudam tanto quanto gostaríamos na hora em que precisamos, digamos, saber como lidar com a morte de alguém próximo – mesmo que, talvez, sejam as únicas ferramentas necessárias a alguns Quincas Borbas e Sheldons Coopers. Vejo isso o tempo todo, as pessoas podem ter lido numa revista que o perdão traz benefícios ao corpo, mas praticá-lo com propriedade está infinitamente distante de conhecer seus benefícios à fisiologia. Quando devemos falar e quando devemos ficar quietos? Quando devemos oferecer ajuda e quando devemos deixar que o outro cresça por si mesmo? Quando devemos escolher a coragem e quando a paciência? São questões com que eu trombei em inúmeras conversas e que raramente vejo impressas ou discutidas seriamente. No entanto, minha definição de sabedoria talvez ainda esteja muito vaga. O que tenho em mente é algo como a retórica dos antigos, a sabedoria tão fora de moda praticada por gente como Quintiliano ou Sêneca. O que advogo é o direito de alguém escrever sobre moral, sem ser necessariamente teórico ou científico.

Porém, alguém talvez possa dizer que isso não é necessário, que o conhecimento mais acadêmico pode ajudar com todas as questões difíceis da vida sem o menor problema. Até certo ponto, concordo. No próprio exemplo dado acima, o da morte, poderíamos dizer que uma pessoa irreligiosa encontra conforto na ideia do materialismo, influenciada pelas descobertas da ciência, defendida por inúmeros pensadores das Humanidades e que diz que a morte do corpo é apenas o fim, somos apenas matéria, "imagine there's no heaven (...) no hell below us"¹, como sugere o John Lennon. Mesmo que ele encontre consolo real ali, ainda acho que haja espaço para uma sabedoria não-teórica. Até porque o discurso de sabedoria que defendo aqui não seria apenas uma voz que discorda da ciência ou das teorias sociais, muitas vezes o sábio e o teórico podem concordar. Deixo o G. K. Chesterton, no seu estilo combativo habitual, explicar melhor o que eu quero dizer:
Perceber-se-á que a velha eloquência agora é evitada – não tanto porque era artificial quanto porque era real. A retórica não desagradava os homens porque o seu estilo era ornado, mas porque o seu sentimento era simples. Acontece que a retórica tem um modo atraente de colocar verdades muito claras ²
 Chesterton coloca bem o problema. Os sábios da Antiguidade não diziam verdades inéditas, mas diziam-nas com um sentimento claro, pertinente ao momento, quase como profetas, repetindo as velhas virtudes, denunciando os vícios do povo ou dos poderosos.

Mas sem conseguir encontrá-la no âmbito "sério", as pessoas procuram essa sabedoria simples da retórica clássica em outros lugares. Ela tem permissão, por exemplo, para estar na arte porque esta pode ser tomada como uma expressão de subjetividade, sem pretensão de verdade. Robert McKee diz que "Tradicionalmente a humanidade procurou a resposta para a pergunta de Aristóteles nas quatro sabedorias – filosofia, ciência, religião, arte – tirando luz de cada uma para montar um sentido de acordo com o qual possamos viver. (...) E à medida que nossa fé nas ideologias tradicionais diminui, voltamo-nos para a fonte em que ainda acreditamos: a arte da história.". ³

Mas procurar respostas na arte certamente não é a pior das consequências da marginalização da sabedoria. Um gênero preencheu essas lacunas mais que todos os outros: a auto-ajuda. Ali, os preconceitos que impedem que os conselhos morais cheguem aos círculos mais prestigiados não atuam, os autores de auto-ajuda não estão preocupados com sua reputação junto à elite intelectual. Ela funciona de acordo com a lógica do mercado, ela simplesmente anuncia um bem – a ajuda com algum problema – e as vantagens em adquiri-lo – a rapidez ou a eficácia com que o problema será solucionado. Não que eu ache que as leis de mercado sejam inerentemente ruins, elas vêm apenas sanar um problema que deveria ter sido tratado por algo mais competente, como uma mãe que terceiriza a educação dos filhos.

Por isso, quando alguém fala seriamente em moral pode ouvir que está só propagando auto-ajuda. Mas esse não é o único rótulo possível. Outro muito comum e cuja resposta demoraria pelo menos outra postagem inteira é a acusação de intolerância. Alguém pode dizer que a moral é relativa e que dar conselhos morais com pretensão de verdade como faziam os antigos pode tornar-se uma forma de opressão. Eu discordo por inúmeras razões, mas para não me alongar, posso dizer apenas que não estou sozinho. Hoje, na academia, não é tão comum quanto se pensa dizer que a moral está totalmente no âmbito da escolha pessoal, como vemos nesse trecho de um curso do professor Shapiro, da universidade de Yale. Cada vez menos acadêmicos acreditam no relativismo moral.

Portanto, se, na academia, voltou-se a acreditar que existem verdades morais e voltou-se a debater a respeito de quais seriam elas, esse tipo de conversa precisa chegar até as pessoas. A arte continua oferecendo-nos grande consolo e ensinamento, e a ciência dá-nos subsídios sólidos para algumas das discussões, mas ainda há lugar, na verdade necessidade, de um discurso claro que dê conselhos sábios sobre como lidar com as nossas dores e como responder à pergunta que Aristóteles fez na Ética: "como devemos viver?"

1 - "imagine que não há Céu (...) nenhum inferno abaixo de nós", traduzido do inglês.
2 - The Rhetoric of the Peacemongers, The Illustrated London News, 13 de outubro, 1917.
3 - Story, p. 11-12. Traduzido do inglês.

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Um ano de blog. Sonho de uma Noite de Verão: Homo beaglis.

Um ano de vida e muitos meses de inatividade. Lamentando o segundo, este blog comemora o primeiro. No dia 31 de outubro de 2012, eusouracional veio à vida. Dia das bruxas e dia da Reforma Protestante – dois grupos que solidariamente já compartilharam o abafadiço da fogueira. (Licença para piada vil e ligeiramente falaciosa)

Pedimos desculpas aos leitores pelo silêncio e esperamos surpreendê-los ao dizer que o blog não encerrou suas atividades. Alguns de nós estamos envolvidos em um novo projeto, a ser lançado em fevereiro. Outros estão cheios de ideias em potência, que aguardam um sopro final para se tornarem ato. 

Assim sendo, e já fazendo um trocadilho irresistível no dia da Reforma, sejam indulgentes para conosco. Abaixo vai um post simples e breve sobre a cachorrice que anda rolando por aí.

*

“Quanto mais conheço os homens, mais admiro os cães”. É uma dessas frases anônimas que poderia ser atribuída à Clarice Lispector e que sempre circulou inofensiva por aí. Nas últimas semanas o aforismo ganhou um significado bem real. Poupo os leitores dos fatos sobre o Instituto Royal, os beagles e tudo aquilo. 

Minha questão provém de uma estupefação com a desumanidade em relação aos homens, não em relação aos cães (que não são humanos, sói lembrar). Ao descobrirem o inédito fato que animais são usados como cobaias para as ciências médicas, muitas vozes, num elã de indignação, decidiram que isso deve cessar. 

Alguns, quando inquiridos sobre uma possível solução para o teste das drogas, não tiveram qualquer pejo de anunciar: que se empreguem presidiários, essa corja de malfeitores, essa malta de facínoras. O argumento é que, enquanto os caninos são inofensivos, homens matam, estupram, torturam, roubam, queimam vivos, decapitam etc. Homens sucedem na proeza de serem moralmente inferiores aos beagles. É disso que se trata. Poderíamos simplesmente nos aturdirmos com essa proposta. Mas ela foi levantada por um número suficiente de pensadores para merecer mais do que isso. 

O pressuposto necessário para que se possa aventar essa ideia é uma visão de homem enquanto parte constitutiva e exclusiva do reino animal. O homem não é mais que uma besta no campo, um bípede no topo da cadeia evolutiva. Enquanto tal, ele é moralmente emparelhado a todos os outros animais. Como o presidiário comete delitos e os beagles são isentos de contravenções, a justiça demanda que o primeiro seja punido e o segundo seja inocentado. Como os animais beagles logram uma superioridade moral em relação aos animais homens, estes são candidatos muito mais apropriados ao posto de cobaias do que aqueles.

Só uma visão naturalista legitima as cobaias humanas. Andrew Goliszek mostrou as abominações que essa antropologia pode ocasionar por meio da eugenia. A contemplação do homem como um conjunto de células tão bom quanto qualquer outro animal ou qualquer outra coisa deve ser temida e rejeitada, sob o risco de um novo réquiem pela raça humana. O homem é criado de forma especial por Deus. Algo no homem se ausenta em qualquer outro ser: a imagem e semelhança do ser supremo, o sopro de vida que distingue a humanidade da matilha. Infratores morais não são animais raivosos, transgressores de uma ética animalesca. São homens falhos, corrompidos pelo pecado, mas que preservam sua humanidade, não obstante. São homens passíveis de arrependimento, de conversão moral, de edificação espiritual. Não se encontram, nunca, abaixo de um canino, por pior que sejam. 

Homens e cães, meninos e lobos, não compartilham um código moral. Animais não possuem moralidade, são vítimas da pura necessidade. Não existe justo e injusto no reino animal. Nenhuma leoa foi jamais conduzida a um tribunal, humilhada diante de provas gráficas da NatGeo, e condenada por conduta desrespeitosa aos veados do Serengeti. Não há moralidade animal. Quando um beagle não xinga, não mata, não estupra, não rouba, ele está agindo conforme sua natureza: é, afinal, um animal. É necessário que assim seja. Os cães não são corrompidos pela maldade nem escravos do pecado. Exaltá-los por isso é o mesmo que dar palmas às árvores que não saem do lugar, enquanto larápios perversos andam de um lado para o outro. O homem é um – e o único – ser moral, e deve ser contemplado enquanto tal, tratado enquanto tal, julgado enquanto tal. Ninguém condena uma pedra por não ser uma maçã. Nivelar o homem a um cão, criar uma espécie nova de homem, um Homo beaglis, é um disparate. 

A implementação de experimentos médicos em infratores vem cheio do discurso do “duplo benefício”. De um lado, pune-se, de outro, lucra-se. Que mal tem? É nefanda a perspectiva da punição exclusiva, sem qualquer forma de reabilitação, de resgate, de reeducação do contraventor. Não passa, isso, de vingança. Transfazer os presídios em imensos laboratórios é formalizar a ideia de que não há salvação para delinquentes, é promover o ódio aos fautores do delito, é sagrar a vingança como justiça. E apenas Deus, o justo juiz, tem essa licença e poder.

Por fim, é sempre relevante lembrar o mandato cultural de Gênesis e o objetivo da ciência. 

“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.” (Gn 1:28)

Não é uma sugestão, é uma ordem. Não é, também, um alvará de torturas, uma licença para sevícias. É o reconhecimento de Deus de que homens, independente de nossas simpatias animalescas e antipatias antrópicas, são ontologicamente superiores aos animais. É também a solução de Deus para remediar os efeitos da Queda. Dores de parto, infertilidade da terra, doenças, tudo isso que há no mundo, fruto do pecado humano, deve ser sanado pela sujeição e cooperação das outras criaturas de Deus. 

Titânia apaixonada por um asno em Sonho
de uma Noite de Verão, de Shakespeare.
Amar aos animais como seres morais é uma atitude que coloca seriamente em questão qualquer conceito de humanismo professado por seus amantes. Inversamente, enxergar em presos, homicidas e infratores de alto escalão um reservatório de cobaias em prol da humanidade é trair o próprio conceito de humanidade num oxímoro doentio. É de uma desumanidade tal que, seguindo sua lógica, os próprios propositores desse desatino deveriam ser imediatamente conduzidos algemados ao laboratório. Sua sorte é que eles mesmos não são levados a sério. É tempo, portanto, dos homens despertarem de seu sonho de uma noite de verão, do delírio mágico impingido pelas travessuras puckianas da ignorância brasileira, de desfazerem-se do hábito de Titânia e ajuizarem-se de que homens valem mais que asnos – e que beagles também. 

sábado, 22 de junho de 2013

A pátria que te pariu

O Brasil não despertou, o Brasil deu à luz. 

Uma nova geração de brasileirinhos rebentou neste mês. Mas são filhos alheios de um país que serviu, por circunstâncias infelizes, como barriga de aluguel para pais infaustos. São filhos, na verdade, de um matrimônio genético nefando: por parte de pai, do marxismo escolástico que se assenhorou do ensino nacional, desde o infantil, pela alfabetização materialista freiriana, ao pós-doutorado, com os medalhões impostados da vermelhidão docente universitária.  Por parte de mãe, romperam das trompas de uma mídia progressista e amoral, embirrada com a censura e o conservadorismo militar, e empenhada em estilhaçar qualquer grama de moralidade pela instrumentalidade de seus programas acintosos – de Xuxa Meneguel, a estranha amante, ao transgenerismo das mulheres-fruta, que ainda exigem catalogação, passando pelo orientalismo novelístico chamboqueiro de Glória Perez e pelo despudor frenético do horário nobre – nobilíssimo. 

O vitelo dos infantes foi toda proteína fera e execrável que se pôde produzir ou tonificar no século XX: amor livre, libertinismo, ateísmo, leninismo, secularismo, abortismo, cientificismo, utopismo, canalhismo, sem vergonhismo e outros frumentos parelhos. Sua gestação foi zelosa, coberta de carinhos totalitários. Muito mais que nove meses, foram-se bons 30 anos de hegemonia intolerante. Quanto maior a clausura na placenta da imoralidade e da desumanidade, mais robusta e mais rija veio ao mundo a alimária. 

Dos genes paternos herdou-se a certeza ignorante dos males do capitalismo, o coitadismo profissional do discurso do oprimido, a indolência inveterada de uma redenção estatista, a estadodependência de um paternalismo falido e a ficção inexequível e irresponsável de suas utopias, bulas infalíveis para a tirania e o humanicídio. A genética materna ensinou que a automoralidade, que é o mesmo que amoralidade, é consequência da inevitabilidade cronológica do tempo. A neuroenfermidade do relativismo moral foi saudada como progresso, e a sabedoria dos avós foi sepultada sob a lápide da caretice. 

De um lado, aparatou-se um enxoval vermelho, com direito a chicutas lentes de contato, vermelhas e inamovíveis. De outro, sublimou-se qualquer lastro objetivo de conduta ética, rebatizando a ‘liberdade’ de ‘anarquia moral’. O sustento umbilical, portanto, portou a noção de que tudo o que remete a Deus, à família, à moral, ao conservadorismo, à prudência, à cautela, ao respeito histórico, tudo isso deveria se alojar nos neurônios do preconceito e no córtex da maldade intrínseca. Tudo o que fosse “luta”, mudança social, confronto do “sistema”, libertinagem, autojustiça, redencionismo político, revolução, socialização, tudo isso, por sua vez, galvanizado na toxidez do mercúrio, foi celebrado como o emplastro salvífico de um país do futuro. 

E agora?

Agora tuas crias romperam a bolsa da desordem, pátria amada. Todos os neófitos que aqui chegam se põem a chorar, cientes do mundo decaído em que debutam. Teus novos filhos também choram, nos leitos asfaltados do teu seio: as ruas. Choram porque querem leite. Querem leite, querem pão, querem saúde, educação, open bar, sexo gratuito e de qualidade, querem o Lucas no lugar do Hulk, querem Kinder Ovo a R$1,00, querem aurora boreal nos trópicos e o resfriamento do Pólo Ártico. São filhos mimados, mal educados de útero, impermeáveis à palavra “não”. Estes caçulas não demonstram qualquer respeito pelos irmãos mais velhos, e se preciso for lhes saquear para impor sua vontade manceba, assim o farão, alegando inocência, democracia e, sobretudo, pacifismo. 

É a prole dos direitos. Filhos mais novos que, por uma estranha lógica familiar, se arrogam todos os direitos dinásticos. Mas os direitos quais? Todos, tudo que couber em suas vontades, de preferência o irrealizável: tarifa zero e diminuição de impostos, permutação de estádios em hospitais, blindagem contra crimes federais, imunidade incondicional ao terrorismo etc. Quanto mais utópico, melhor, assim se prescinde de analisar os meios de efetivação das pautas, de discuti-los e, principalmente, de propô-los. Basta gritar os fins, os desejos viscerais, e a mãe que se resolva. Não importa se esses direitos não são prescritos em qualquer lugar: nem na Constituição, nem na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, nem na Comissão de Direitos Humanos da ONU, nem mesmo na Declaração de Independência dos EUA. Ele está inscrito nos anseios socialista dos rebentos hodiernos, e isso basta. 

Eu, que ainda participo dessa geração de revolucionários de iPhone e Facebook, solidarizo com o choro, mas com ele não faço coro. Todo bramido de recém-nascidos deve ser ouvido, ele é sempre o significante de alguma coisa. Mas o berro violento, que assusta e intimida, o aulido que outorga sua vontade a qualquer preço, esse é um candidato indesculpável a boas palmadas corretivas. Não creio que se tratem de bebês anencéfalos, e só por isso não foram abortados por seus pais. Contudo, são ainda crianças sem instrução e sem educação, e que, se insistirem no berreiro estridente como mecanismo de atualização do império de sua vontade, só me resta lhes pedir, por obséquio, em bronco e exaltado linguajar: vão pra pátria que te pariu! Que eu, daqui a pouco, vou-me é embora.


Pedro

sábado, 15 de junho de 2013

Razão e Sensibilidade: uma breve opinião sobre as manifestações em São Paulo

Não é só por R$0,20. É muito mais que isso. É um desejo psicossomático incontornável de lutar contra qualquer coisa. Esta é uma fala pessoal e autoral, pela qual não empenho a palavra do blog. 

Quando a PM avançou sobre a USP em 2009 eu me fiz presente no campus. Participei da assembleia geral, em meio às barricadas da Av. Professor Luciano Gualberto, que definiu que o mundo seria um lugar melhor sem a Polícia Militar. Ali eu me convenci de uma desconfiança nutrida há algum tempo: o movimento estudantil brasileiro é uma ode à irracionalidade humana. Uma comissão de estudantes da Faculdade de Economia (FEA), do Instituto de Matemática (IME) e da Politécnica definiu que levariam testemunhos aos seus respectivos institutos, convidando os estudantes aos protestos. Tudo muito racional e sensato. No instante seguinte o microfone ecoa os berros animalescos de uma criatura que exigia a invasão imediata das sobreditas faculdades e a instalação de barricadas intransponíveis. Os estudantes transbordaram de êxtase. Ingênuo e atordoado, reivindiquei a voz e denunciei o desatino contraproducente daquele brado e daquela atitude. Ouvi um silêncio desconfortável e o ensaio de algumas vaias.

Então eu soube: o movimento estudantil e seus adeptos são muito mais sensíveis do que racionais. Estão sempre dispostos a se comover com uma fala belicosa em nome de um suposto bem, sempre ansiosos por aderir a uma utopia integralmente impraticável, factível somente nos sonhos cardíacos dos manifestantes. Não importa a ordem e a racionalidade de uma manifestação. A depender dos partidos e órgãos políticos (PSTU, PSOL, PCO, CUT, UNE etc.) que controlam do início ao fim a pauta e o desenrolar dessas assembleias, o que importa é promover a luta social. São movimentos de luta. São partidos de luta. E a luta não é pacífica, nem nunca foi. É por isso que circulam imagens pelo facebook ironizando o repúdio ao vandalismo e à desordem. Afinal, a Revolução Francesa não zelou pela ordem e pelo patrimônio. 1968 tampouco. A tradução mais literal, que a esquizofrenia revolucionária não tem coragem de assumir, é que o vandalismo é legitimado e a desordem é justificada se o bem maior for promovido. Tudo em nome da revolução.



É muito mais que R$0,20. Trata-se da revolução social. Como disse um cartaz, “Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”. Nada mais fácil que mover as sensibilidades cidadãs dessa maneira. É assim que uma manifestação engrossa suas fileiras. Protestam, são reprimidos, se vitimizam, apelam aos nervos dos cidadãos, e a marcha se avoluma. Dos poucos milhares do movimento inicial à centena de milhar que promete entupir o Largo da Batata na segunda-feira, há muita sensibilidade e uma racionalidade rarefeita. O magnetismo do movimento não é a causa boa, justa, razoável e transparente da melhoria do transporte público. É o desejo de mobilização, é a catarse coletiva, é o orgasmo psicológico que a ânsia de transformar o país promove. Os R$0,20 já não são mais nada perto da oportunidade inestimável de dizer “eu estava lá, quando tudo se fez novo”. Tamanha é a necessidade patológica de lutar que passaram a acusar as forças militares de atitudes ditatoriais. Mal se cabem de inveja das gerações que realmente enfrentaram os anos de chumbo. O desejo de reeditar aquela luta mobiliza infinitamente mais do que os 20 centavos. 

Assim, fique sepultado o mito do diálogo. O movimento não quer diálogo, e nunca quis. Não se dialoga com palavras de ordem que têm, todas, ponto final ou de exclamação. Não se dialoga empunhando bandeiras vermelhas. Não se dialoga no asfalto na Av. Paulista. ‘Diálogo’, no paradigma semântico dos protestos, significa acato incondicional às demandas do movimento. Não há qualquer possibilidade do diálogo se encerrar com o esclarecimento da inviabilidade matemática da impugnação do aumento. O único desfecho possível de um diálogo é aquele em que a palavra final do governo deve ser “pois não, senhores”. E qualquer manifestante que diga o contrário disso é um desavergonhado, no rigor da palavra, pois se jogasse com a possibilidade racional da negativa, nem estaria na rua. Mas desavergonhado é uma palavra demasiadamente forte à sensibilidade revolucionária.

A coisa tende a piorar. Segunda-feira me parece o Dia D. A promessa é de mais de cem mil em Pinheiros. Unidos para que? Na melhor das hipóteses, para gritar, bem alto, que “R$3,20 é um assalto”. Seria muito pedir que essas cem mil pessoas oferecessem alguma solução alternativa ao aumento da tarifa? Digo soluções racionais, não um devaneio onírico que sustenta a nulificação das taxas (com prejuízo de quem trabalha mais e ganha mais). É evidente que o idilismo da proposta movimenta milhares, mas a racionalidade de sua inexequibilidade só consegue acumular disfemismos. Na prática, esse oceano de pessoas vai fazer uma só coisa: gritar que a tarifa está cara. Sem propostas, sem soluções, sem alternativas reais e exequíveis. Isso é problema do governo. O estado que resolva. Como recém-nascidos que choram pelo leite, independente da robustez da mãe, assim se exige uma solução do estado sem qualquer consideração por sua saúde. 

Mas o estado brasileiro está anêmico. Isso porque o estado, sinto dizer, somos nós. A trivialidade entra em ação: dinheiro não se planta, não se colhe e não cai do céu. Diminuir tarifas é aumentar impostos. O prefeito Fernando Haddad informou que o aumento abaixo da inflação acumulada de dois anos acarretou um subsídio de 600 mi de reais aos cofres públicos. “Cofres públicos” é uma alusão eufemística ao nosso bolso, e não às gavetas lacradas do Banco Central. Manifestações em que o bramido é a redução de tarifas com ônus para “o estado” não passam de doses tóxicas automedicadas em um doente moribundo.  Bem vindos ao estado brasileiro assistencialista: obeso, inepto, deficiente, corrupto, canhestro, desjeitoso, inábil, estavanado e desastrado. Contribuir para a morbidez desse governo não alivia em nada a austeridade da vida no país, e sim o contrário. 


Ao que tudo indica, um grupo não foi rendido pela sensibilidade dos movimentos paulistanos, e optou pela racionalidade de soluções alternativas. Organizarão um protesto paralelo, cujo objetivo é conscientizar a população de outros mundos possíveis onde o transporte público poderia ter um preço justo e uma qualidade digna. Estarei lá. Recuso-me à vitimização do Largo da Batata, sublinho a conscientização do vão do Masp. Enquanto segunda-feira não chega, estarei em oração para que este movimento, movido pela razão, não se deteriore na bílis e no mimo da sensibilidade. 

Post Scriptum

Voltei para compartilhar o trecho de uma entrevista de Roger Scruton que diagnostica com precisão o que penso sobre os manifestos paulistas ocorridos até agora.

APESAR DO COLAPSO DO COMUNISMO E DE OUTRAS TRAGÉDIAS SEMELHANTES, AS PESSOAS CONTINUAM AGARRADAS A CAUSAS UTÓPICAS. PORQUÊ?

SCRUTON - O pensamento utópico sobrevive porque não se trata realmente de uma ideia, mas de um substituto de uma ideia, algo que serve de alívio para a difícil – e geralmente depressiva – tarefa de ver as coisas como elas são realmente. É uma forma de vício, um curto-circuito que afasta os indivíduos da razão e do questionamento racional e efetivo. O pensamento utópico remete-nos diretamente para o objectivo, passando por cima da viabilidade do projeto. É fácil digeri-lo e incorporar o seu optimismo mal-intencionado e sem fundamento. O problema vem depois, quando a utopia termina em fiasco.

sábado, 18 de maio de 2013

Ego, o trabalho do crítico e do artista

Apesar de nem todos se lembrarem do seu nome no filme, todos lembram do papel de Anton Ego em Ratatouille: ele é o implacável crítico gastronômico enfrentado pelos heróis cozinheiros.

Conhecemos um pouco mais da sua trajetória apenas no final do filme, portanto, posso estragar o final da película para alguém que ainda não tenha assistido. Quando criança, Ego experimentava o amor da mãe através dos pratos que ela lhe oferecia, ele encontrava um prazer simples mas verdadeiro nessas refeições sem grandes sofisticações que eram servidas pela família. De alguma forma, ele cresce para se tornar um crítico exigente, quase impossível de satisfazer. O filme não fala nada a respeito do seu processo de tranformação, primeiro, porque eles sabiamente decidiram que isso poderia ser muito chato e, depois, porque todo mundo conhece um pouco como essas coisas se dão. Mesmo com todas essas advertências em contrário, arrisco-me com uma descrição: tudo começa com o amor à boa comida, que o leva ao interesse em falar sobre ela, sua paixão pelo assunto faz aflorar uma habilidade com o texto, essa habilidade lhe rende elogios que, quando repetidos, levam-no gradativamente a acreditar não somente que ele é um bom crítico mas um privilegiado, membro de um grupo muito restrito de connoisseurs.

Tentando continuar a desvendá-lo, percebemos que o nome da personagem é certamente outra pista sobre a natureza da sua personalidade. A forma como se relaciona com os protagonistas parece ser seu modo padrão de comportamento, ou seja, aos outros demonstra inimizade e superioridade, afeição é algo reservado apenas a si mesmo e ao seu renome. Ele mesmo reconhece isso: "de certa forma, o trabalho de um crítico é fácil. Nos arriscamos pouco e temos prazer em avaliar com superioridade os que nos submetem seu trabalho e reputação. Ganhamos fama com críticas negativas que são divertidas de escrever e de ler."

Amar somente a si mesmo é um comportamento que Agostinho chama de orgulho, um vício muito comum e, em sua opinião, o pior de todos. Orgulho é esse amor próprio que está sempre em competição com todos os outros egos concorrentes e cujo prêmio, no final, é o poder. George Orwell, num registro muito mais sombrio, coloca uma das melhores descrições desse mal na boca de O'Brien, personagem de 1984.
‘Como um homem demonstra seu poder sobre outro, Winston?’
Winston pensou. ‘Fazendo com que ele sofra’ ele disse.
‘Exatamente. Fazendo com que ele sofra. (...) O poder está em inflingir dor e humilhação.
O mal de Anton Ego não é como o de O'Brien em escala mas certamente o é em natureza. Todos os elementos descritos acima fazem parte do comportamento do crítico gastronômico de Ratatouille. Primeiramente, há a ridicularização das vítimas de suas críticas; na própria forma como Ego é desenhado, podemos enxergar essa característica: sua fisionomia sempre mantém uma aparência de desdém e superioridade, não importa se está zangado ou impaciente. Outro ponto importante é o desprezo pelo lema de Gusteau, "qualquer um pode cozinhar", o que não é uma surpresa já que ele fere o princípio fundamental do orgulho: para que haja privilégio, devem haver privados; como alguém pode sentir-se acima dos outros sem que ele acredite que possui algo que foi negado aos demais? Finalmente, como já mencionamos, há a inimizade constante em relação a qualquer um que não seja ele próprio, como o vício impulsiona o orgulhoso a tentar colocar-se acima de todos com quem se relaciona, não resta outro relacionamento possível que não a hostilidade. Ego é, portanto, um exemplo perfeito de homem orgulhoso.

Mas uma mudança radical acontece quando ele experimenta a ratatouille servida por Remy. Os males causados por seu ego se revertem e Ego recupera o prazer simples que ele experimentava quando criança – o prato, inclusive, é o mesmo. O orgulho, vício fundamental do cristianismo, é combatido pelo que cremos ser o fim supremo do homem: a alegria; o catecismo escocês diz que o principal fim do homem é ‘glorificar e alegrar-se em Deus para sempre’. C. S. Lewis descreve episódios parecidos em sua autobiografia e também chama a sensação de "Alegria". Ela é definida por Lewis como uma pontada de beleza, algo tão sublime que nos faz querer alcançar uma coisa ainda mais alta, a experiência é como um vislumbre do divino que deixa aquele que a experimentou sedento por mais. Ele se sente assim quando lê pela primeira vez Phantastes de George MacDonald. Perceba a semelhança com a experiência transformadora de Ego no trecho a seguir, em que Lewis desrcreve a ocasião da leitura:

É como se eu tivesse sido carregado através da fronteira enquanto dormia ou como se eu tivesse morrido no velho país e nunca pudesse me lembrar como eu cheguei vivo ao novo (...) Mesmo quando nuvens ou árvores reais haviam sido o material da visão [de Alegria], elas haviam tido esse papel apenas por lembrar-me de outro mundo; e eu não tinha gostado do retorno ao nosso. Mas dessa vez eu havia visto a sombra fulgurante saindo do livro para o mundo real e ficando ali, transformando todas as coisas comuns e, ainda assim, permanecendo a mesma.
Mas não é apenas o refinado crítico que tem seu ego confrontado no filme, seu vício não atinge apenas os abastados, os parentes de Remy sofrem do mesmo problema na extremidade oposta. Para eles, a comida não é lugar para arte ou beleza e o gosto de Remy coloca a situação da família em jogo, todos olham com desconfiança para o hobby e para as companhias do pequeno chef. Enquanto a defesa da simplicidade é um movimento arriscado para Ego, a aceitação da gastronomia sofisticada de Remy é uma ameaça à reputação de seu pai e sua família. O crítico vive focado no renome, brincando com seu poder de colocar aqueles que se submetem à sua avaliação no grupo dos aceitos ou dos rejeitados mas a família de roedores também teme a rejeição que pode advir do hobby de Remy, a ânsia de estar no círculo dos aceitos – e, melhor ainda, no dos privilegiados, como Ego – é uma falha que não está ausente na família. Mais ainda, a incompreensão entre os dois grupos é mútua mesmo que os vícios de ambos os lados sejam parecidos.

Na ratatouille de Remy, porém, ambos os problemas se resolvem. O filme tem uma daquelas bonitas conclusões da Pixar em que a família de Remy, após aceitar seu jeito diferente de tratar a comida, colhe os frutos dessa aceitação, enquanto Anton, acaba por descobrir a verdadeira alegria de viver apenas quando é forçado a abandonar a crítica, a reputação e principalmente o ego; ele investe num pequeno bistrô, abraçando a sua verdadeira paixão: a arte da comida.

Encerro com sua última crítica no filme, muito bonita:

sábado, 11 de maio de 2013

Pensando sobre a Revolução Americana


Recentemente o Pedro me questionou sobre a Revolução Americana, o conflito que se iniciou em 1776 e fez surgir os Estados Unidos da América.

Pedro me perguntou a pergunta óbvia: Isso que os americanos fizeram em 1776 foi uma Revolução realmente?  Como pode não ter sido, se esses revolucionários americanos criaram algo radicalmente novo – a primeira República moderna – e foram influenciados pelos iluministas franceses?

É uma ótima pergunta. Chamar o processo que fez surgir os Estados Unidos de “revolução” significa ligá-lo automaticamente aos dois maiores exemplos de revolução da História: a Revolução Francesa, de 1789, e a Revolução Russa, de 1917. Essas duas revoluções foram profundamente anti-cristãs, tanto na prática quanto na teoria.

A resposta dessa questão é muito importante para o cristão pensante. O cristianismo precisa saber o que pensar sobre revoluções políticas. Afinal, se os americanos fizeram uma revolução, no mesmo sentido dessas outras que citei, o pensamento político cristão deve no mínimo vê-los de maneira cética. E, como sabemos, os EUA são um grande centro do protestantismo mundial, e os protestantes americanos veem positivamente os ideais de seu próprio país.

Propus-me, então, a tentar responder a pergunta do Pedro por meio deste blog. Eu estou persuadido de que a Revolução America não foi uma revolução no sentido da comum acepção do termo. Esse nome "Revolução Americana" é uma figura retórica apenas. Esse é o ponto que irei defender.

Disclaimer: As ideias apresentadas aqui são reflexões apenas, e não conclusivas.  Se você gosta do assunto, por favor, ponha na mesa a discussão. 

*


1776. Durante todo o processo de guerra contra a Inglaterra, e estabelecimento da nascente República, os revolucionários americanos refletiram continuamente sobre o que estavam protagonizando, especialmente em The Federalist Papers, nos próprios debates para formulação da constituição, e em um sem número de panfletos que circularam pelas colônias inglesas na América às vésperas da Revolução. Em The Federalist escrevem Alexander Hamilton, John Jay e Jay Adams, defendendo a necessidade do estabelecimento de um governo central para governar as antigas colônias. Nos debates da constituição, vê-se a figura proeminente de Thomas Jefferson, o pai dos Estados Unidos, o pai da República, um homem cujo pensamento se tornou hegemônico nos anos seguintes. E nos panfletos que antecederam ao conflito armado, pastores, autores menores e entusiastas convocaram os colonos à luta e viveram a exaltação contagiante da luta contra o poder e contra a opressão.

Evidentemente, um bom caminho para analisar o que esses homens estavam fazendo é saber o que pensavam e o que achavam do estavam fazendo. 

Era consenso no pensamento político de matriz britânica do século XVIII – graças principalmente a John Locke e os Commonwealth Man, gente como John Milton, e o Earl de Shaftsbury  – a ideia de que, em algum momento longínquo da história, quando os homens viviam num estado de natureza, livre e sem governo, ao perceberem as paixões e a violência que os homens cometem entre si, optaram por sentar e fazer um acordo: instituir uma autoridade que garantiria a preservação do direito de cada um à liberdade sobre si mesmo e sobre seus bens. Assim, a função do governo civil, no dizer dessa teoria política, é apenas um comprometimento com cada indivíduo em particular, por meio do qual o indivíduo abre mão de exercer ele mesmo a justiça para ver realizada numa autoridade central a garantia da preservação dos direitos de liberdade e da propriedade. Nesse sentido, a sociedade não é a realização mística do corpo divino, ou uma união sacra e misteriosa instituída por Deus, mas somente um acordo, feito com o consentimento de todos os homens, para que haja uma única autoridade responsável por garantir direitos e proteger os indivíduos. Esse tipo de pensamento político era dominante na Inglaterra, e estava estipulado na famosa Bill of Rights de 1689. Esse tipo de teoria política estava em pleno vigor na Inglaterra e em suas possessões coloniais também.

É claro que a constituição britânica não criava esses direitos, ela os reconhecia. Para os americanos, para os ingleses – e para qualquer um que cresse nos mesmos princípios políticos – eles eram universais, válidos para todo homem e em qualquer lugar do planeta. A Bill of Rights apenas garantia a verdade de que o governo inglês estava comprometido com eles, e que isso o tornava o próprio governo legítimo, senão deveria ser este mesmo governo derrubado.

Os colonos americanos foram gestados nesse tipo de pensamento. Não só no liberalismo político em geral, mas em particular afinidade com os Commonwealth Men. Estes homens, verdadeiros reformistas, defendiam a liberdade de culto dos protestantes que não fossem anglicanos, sufrágio masculino universal, e até mesmo a instituição de uma República (o que, em si, não é nada de assustador para um povo que vivera o fenômeno Oliver Cromwell).

Portanto, os colonos viviam há tempos embebidos nessa teoria política e sob os privilégios da própria constituição britânica, legislada pela Bill of Rights. Viam-se como parte da Commonwealth assim como todos os outros que viviam além do oceano, embora, porém, para esses colonos americanos a ideia do governo como garantidor de direitos era mais significativa ainda, pois muitos haviam fugido para a América procurando a liberdade religiosa que lhes foi podada na própria Inglaterra. Ou seja: num colono americano a ideia de liberdade era mais vívida, real e palpável do que para um inglês, um “reinol” que se ocupava também das questões da monarquia, do parlamento, da experiência adquirida por séculos de nação britânica, ou da tradição como um todo.

Aqui entra uma questão fundamental para começarmos a julgar o que foi a Revolução Americana: a idéia de tradição. Pois toda Revolução se ergue na contramão da tradição, rasga-a em farrapos, tem horror a esse corpo de experiência coletiva acumulado ao longo do tempo, lenta e gradualmente, sem o auxílio de nenhum intelectual mágico. Revoluções trituram tradições.

Mas na América não havia tradição. Nunca houve batalha de Hastings na América. Nem João sem Terra. Nem as cruzadas. A Igreja Anglicana não dava suas caras por lá, nem o parlamento. Toda essa história jazia há léguas e léguas de oceano, muitos cresciam ouvindo-a sem nunca terem sequer visto a Europa. O que havia na América era a colônia, seu único diferencial era ser regida pelo próprio modo político britânico.

“Ora”, diz-me o Pedro, “e os 200 anos de história colonial? Isso não tem valor? Ser colônia não é também uma tradição?”. Decidir se há tradição ou não é muito importante quando se pensa em Revolução.

Eu diria que a tradição colonial é algo frágil. Enquanto metrópole, gestar colonos como os colonos americanos é algo perigoso. Nesse sentido, é compreensível o medo que os portugueses tinham das ideias iluministas chegarem à colônia brasileira. A parca civilização colonial não significa muita coisa para um pensador liberal, um commonwealth man, uma espécie de bon vivant das ideias políticas, que respira a noção de direitos, de liberdade, de república. Ele vibra com ela, é um humanista cívico, um sujeito cheio de amor pela virtude, um namorador da boa política, da civilização humana, e que tem medo da natureza corrompida do poder. Após ficarem independentes, por exemplo, os americanos vão logo perceber que não tinham nada e precisavam criar tudo. Todo o século XIX e a conquista do Oeste será o século de “criação” dos Estados Unidos da América. A colônia americana era pífia sobre qualquer exame civilizacional sério. Isso é bem diferente de tradição. Burke, o gran maestre conservador, quando invoca a tradição inglesa, fala justamente dessas coisas que falei: batalha de Hastings, conquista Normanda, João sem Terra, Magna Carta. Isso sim é tradição. Ele tão bem sabia disso que, conservador que era, apoiou a independência das colônias, pois cria que elas deveriam desenvolver sua própria história. Tradição é uma conquista civilizacional, algo que precisa ser cuidado e preservado para não se perder (dirá Burke). Uns povoados costeiros irrelevantes não são a mesma coisa que tradição.

Talvez até seja, para quem está meio acomodado na cadeira. Mas quando o rei inglês fica “abusado”, as coisas vão ficando sérias. Por isso eu disse: é algo frágil. Ninguém irá evocar a tradição colonial para evitar entrar em conflito armado contra a Inglaterra. Muito rapidamente os americanos vão perceber que, se eles não são ingleses, não são nada ainda.

Primeira bandeira americana: as treze estrelas
representam as treze colônias
Pois eis que as pretensões imperiais inglesas e o elevado custo com guerras recaem enormemente sobre as colônias americanas em forma de impostos e fiscalizações. O rei inglês começa “a abusar” da colônia (não dá para contar toda a história aqui). Em quase todo lugar essa história é contada como o estopim da declaração de independência das colônias americanas (fala-se da festa do chá de Boston, e tudo o mais). Isso é verdadeiro. O primeiro Congresso da Filadélfia, por exemplo, não é separatista. Os colonos vão à Inglaterra reivindicar direitos, e são rechaçados. Quando o rei aumenta sua exploração da colônia, ele entra em conflito direto tanto com a ideia de commonwealth já gestada e desenvolvida na América, quanto com a própria ideia de liberdade que seu país outrora inseriu nos viajantes que se instalaram na América. Ele simplesmente mostrou aos americanos que a América era realmente um lugar diferente, e não era Inglaterra. Os americanos vão construindo seu raciocínio a partir disso. A Revolução é gestada durante o conflito, ela não é produto de nenhum grande teórico que projetou tudo de cima de sua escrivaninha, ou que elaborou uma Enciclopédia explicando o funcionamento da humanidade a partir da ciência. A idéia de América vai surgindo conforme o confronto vai se delineando, e a luta por um ideal de liberdade em que não há poder central opressor vai contagiando as mentes americanas. Não houve nenhum teórico da Revolução.  Aliás, como eu mostrarei mais para frente, os homens que citei, Jefferson, os irmãos Adams, Hamilton, Jay, Washington, não eram intelectuais no sentido que entendemos hoje. Eram homens de negócios, políticos, administradores, juristas, governantes, pessoas com um senso muito prático da vida real, e não cientistas da agência humana.

Desses desentendimentos e desses conflitos, portanto, começa a surgir na colônia uma espécie de reavivamento político pautado pelo medo da tirania e da opressão. Isso é muito significativo. A guerra contra a Inglaterra será decidida, no limite, por pequenas milícias formadas por cidadãos comuns, ordinários. Isso está no germe da cultura americana até hoje: as pequenas associações, as comunidades locais, o direito de portar armas, e uma desconfiança absurda com qualquer governo ou poder instituído. A coisa que um americano médio caipira mais odeia é um homem do governo batendo a sua porta. Isso está no espírito popular da guerra de independência. O espírito reformista que agita os colonos é extremamente idealista: libertar o indivíduo da opressão política. Gestados na tradição dos direitos de liberdade, com um nível de educação acima da média (panfletos, panfletos, e mais panfletos, jornais, artigos, em cidades e vilas) os colonos se veem como oprimidos, e com sua liberdade em risco por causa do rei que não era honesto e coerente com seus princípios. A nação inglesa traíra a colônia, dizem os americanos. Os colonos viam um risco real de perder a liberdade. Bernard Bailyn fala de “medos reais, ansiedades reais”, a crença em uma conspiração contra a liberdade, oriunda da corrupção do espírito humano pela detenção de poder, e que ocorria no mundo inteiro, sendo o conflito na América um pequeno capítulo desse problema. Há uma “liberdade contagiante” (também diz Bailyn) que agita a colônia.

Não faltam estudos sobre a maneira como essas idéias se popularizam de maneira singular nas colônias (aliás, não faltam estudos sobre nada da Revolução Americana). Eles giram em torno dos hábitos de leitura mesmo, da divulgação do pensamento americano pela panfletagem, pelos discursos públicos, e coisas assim. Há uma absorção popular do medo da opressão e da tirania.

Às armas, guiados pelo Exército Continental de George Washington, os colonos sofrem perdas enormes inicialmente, mas articulam-se bem com o território, convocam milícias populares e conquistam inclusive ajuda militar francesa. A guerra é vencida na captura de um exército inglês em Yorktown, em 1781, e os derrotados ingleses reconhecem a separação americana em 1783.

Batalha de Camden, 1780.
E o que acontece a partir daí? Como surgem os Estados Unidos? (Continua...)

domingo, 5 de maio de 2013

Contra uma Visão Deflacionária do Homem: A Questão da Maioridade Penal


Redução da maioridade penal. Eis o problema. Ou seria a solução?

O debate vem se arrastando ao limite da exaustão e do insupotável. O facebook já mal tolera a peleja de fotos, discursos, discussões e informações a respeito do tópico. De um lado, pesa a indignação contra os crimes nauseantes que testemunhamos com infeliz regularidade. De outro, o raivoso ceticismo quanto à eficácia do recurso jurídico.

O debate irrompeu novamente, e com força, após o indiferente latrocínio de Victor Hugo Deppman e o repulsivo e ignóbil assassinato da dentista Cinthya de Souza. Os fatos são conhecidos o suficiente para não termos que manchar com eles as páginas deste blog.

O que tenho visto, contudo, é uma avalanche de argumentos que mal arranham a epiderme do problema. Os defensores da redução apontam os crimes pavorosos e o temor paranoico, ainda que justificado, de sua reincidência aleatória. Os opositores alegam que as transgressões são consequência ululante do descaso governamental com a educação e com o sistema carcerário.

A fim de ilustrar, visto a camisa dos indignados. É um absurdo! Um descaso com a vida! É evidente que com 16 anos já se está bem crescidinho para saber o que faz, e por isso deve pagar! Deve apodrecer na cadeia um marginal desses, que é pra aprender!

Banco agora a defensoria. De nada adianta mandar um moleque de dezesseis anos para a cadeia. Olhe a condição de nosso sistema carcerário! É óbvio que aquilo é uma fábrica de criminosos! Só vai piorar a situação! O que precisa ser feito é investir na educação de qualidade e na dignidade do professor. É muito fácil para o estado mandar pra cadeia quem comete crimes, mas ele não dá nenhuma chance pra esses criminosos terem uma vida honrada!

Só que não. A questão me parece ser bem mais complexa.

*

É preciso analisar com acuidade os princípios abstrusos por detrás da ardorosa rejeição à redução da maioridade penal. Para tanto, é imperativo localizar a rede causal dos sobreditos crimes. Em outras palavras, devemos responder à pergunta: por que esses crimes foram cometidos?

Os contraditores da redução informam que as causas dos delitos se reduzem, basicamente, ao pauperismo da educação brasileira e à horripilante condição do sistema de detenção do país. Sanados esses problemas com louvor, as atrocidades do abril nefasto não se repetiriam na sociedade. Uma educação aguçada, instrutiva e de qualidade, aliada a um aparato de correção dos infratores revestido de honradez e humanidade, tornaria vã a propositura de se reduzir a maioridade penal. Adolescentes bem educados e malfeitores reeducados certamente não hão de cometer crimes dessa estirpe. Se eles hoje ocorrem, é por negligência governamental. A solução final, portanto? Um aprimoramento, por parte do estado, no setor mais básico da experiência civil: a educação, o que abarca também a reeducação.

Aprofundemos agora o problema. Que tipo de homem e de humanidade está pressuposto nesses argumentos? Um homem fundamentalmente plástico, capaz de ser moldado pelas circunstâncias onde ambula. Um homem sujeito e submisso aos ditames culturais em que vagueia. Mais ainda: um homem em boa medida determinado pelo ambiente em que vive. Assim, o garoto de periferia que se entrega às investidas de seu entorno, aos vetores que o tragam para a execução da criminalidade, aquele que se deixa levar pelas tristes ocasiões de sua realidade, que cede aos desígnios de seu meio ambiente, este garoto é retratado como uma vítima notória de uma sociedade que é uma vergonha para si mesma. Afinal, o que se espera de uma gestação cujo útero é a criminalidade, senão o parto de um criminoso? A sociedade é que merece as vaias por dar à luz pessoas de tal feição. Como um filho, imagem e semelhança de seus pais, assim o transgressor, espelho de uma sociedade saturnina. 

O ser humano, portanto, é um produto. Ele é o que a sociedade faz dele. Se temos um criminoso diante de nós, a culpa deve ser imputada à sociedade. E é dela, naturalmente, que se deve exigir as ações transformadoras. É o estado que deve garantir os bons estudos das crianças e a recuperação dos bandidos. Enfatizo a cosmovisão por detrás dessas proposições: o homem é o que dele se faz, para o bem ou para o mal. A pergunta que fica a ser respondida: o homem não é, assim, responsável por suas ações?

Aqui começa a sutileza. A posição esmiuçada até aqui transfere a responsabilidade dos atos infratores: do indivíduo executor para o estado gestor. Se o homem se abrevia a um produto social, seus atos se resumem a parcos reflexos de sua educação e seu espaço de experiência. O problema estaria na educação – ou na reeducação – e o responsável por ela deve ser o governo. Essa lógica nos intima a crer, portanto, que a culpa é do governo, incapaz de cumprir as demandas sociais com lisura. Dessa sorte, quando um membro do governo propõe que a maioridade penal deve ser reduzida, ele aponta os falsos culpados. Deveria ele mesmo assumir a falta dos crimes devido a sua incompetência administrativa ou embuste político. Feito isso, deveria tratar de exercer com eficácia sua função: corrigir a sociedade para evitar o recurso dos delitos!

É um problema, em seu ótimo, ontológico. Ou, no mínimo, antropológico. Pressupõe-se que o homem será o que dele se fizer, e que nele não há maldade – ou, quiçá, nem mesmo bondade – autônoma. Se ele produz o mal é porque a sociedade o induziu a tanto, logo, ele não deve ser responsabilizado. O ônus recai, evidentemente, sobre o estado.

*

Não acredito nessa visão simplista, mecanicista, determinista e materialista de homem. Ela é de uma pobreza tal que eu me sinto tentado a convidar seus defensores ao suicídio, depressiva que se afigura essa perspectiva antropológica. (Não me espanta, por sinal, que metade – ou mais! – da Faculdade de Filosofia da USP faça uso de antidepressivos chumbantes. Eu também os usaria se considerasse o homem com essa carência e indigência de espírito.)

É evidente que os contraditores da rejeição não assumem que enxergam o homem dessa forma. Alguns porque são, eles mesmos, inconscientes do fato. Mas todos eles, diante de seus próprios pressupostos, preferem negá-los do que revê-los. Querem manter seus argumentos negando suas premissas. Faz parte da blindagem irracional que seu ódio contra “o sistema” – o culpado de tudo! tudo mesmo! – requer. O grosso dos expoentes dessa visão se assumem enquanto esquerdistas. Por esquerdismo quero dizer, neste caso específico, um defensor de qualquer dos muitos matizes do marxismo. A verdade inconveniente é que o próprio marxismo requer um determinismo social. Um determinismo intransponível, por sinal, devido ao poder das ideologias. Da mesma forma, esses militantes são, em sua esmagadora maioria, evolucionistas, e mal se conscientizam do determinismo necessário que a teoria da evolução implica.


Digam o que quiserem, reconheçam se forem honestos: são deterministas. A causa da maldade está na sociedade, o culpado é o governo, e o homem não pode ser responsabilizado por seus crimes.

Mas há uma exceção. Nem todos os homens podem ser escusados de suas infrações. Existe um tipo bem específico de homem que deve arcar com todas as consequências de seus atos: o cruel e desumano homem burguês. Falando em termos mais latos, o rico, o que teve uma boa educação, o que jamais passou necessidades, o que nunca sofreu as agruras da periferia. Afinal, que motivo teria ele para cometer um assassinato? Ele não sabe o que é sofrer! Fosse ele um pobre garoto de rua, que comeu o pão que o Diabo (??) amassou, então ele estaria justificado. “Culpa do governo, que não educa e exige educação!” Mas um bon vivant? Este optou pelo crime, e é responsável por ele. Não o estado, mas ele! O indivíduo! O resultado é extremamente curioso: o indivíduo provido de bons recursos, boa educação e boa família, este deve ser responsabilizado por seus atos. Seu antípoda, o pobre, de educação lastimável e família invertebrada, este não pode ser responsabilizado por seus atos. Ele tem uma “licença social” para ser como é. Não passa de uma vítima e um produto de um sistema que o estado conduz e alimenta. Rompe-se aqui sua própria lógica determinista. Só interessa bradar o determinismo quando se faz oposição “ao sistema”, quando se pode culpá-lo pelas decisões humanas. 

Sim, eu acredito nas decisões humanas. Não penso que um garoto de periferia que se mantém íntegro havendo nascido em um mundo de promiscuidade moral, que o adolescente que resiste às investidas de seu entorno que o arrastam para os crimes hediondos, seja um milagre. Isso seria santificar a simples virtude como ato hercúleo e legitimar a torpe maldade como inércia. Não. Ele não é um milagre, é o produto de suas escolhas.


*

Aprecio o ser humano o suficiente para entendê-lo como um agente. Não contemplo o homem como o produto de uma rede causal socialmente determinada, e por isso não me inclino a culpar o governo por suas ações. Dito de forma parmenidiana: o responsável pelo crime é o responsável pelo crime. A maldade que deflagra a infração é fruto da escolha de um homem, um indivíduo em sua inteireza e profundidade civil, psicológica, ontológica e espiritual. Qualquer posição que rejeite essa afirmação acarreta em uma visão deflacionária de homem que me parece altamente casmurra e deplorável. 

É evidente que existem problemas no sistema educacional e carcerário do país. É inquestionável que esses rombos carecem de urgente solução. Concordo que o ambiente em que uma criança se desenvolve é elemento fundacional na gestação de seu caráter. É justamente por isso que defendo os valores familiares tradicionais. Mas estas são questões independentes. O que é intragável, sobremaneira, é a desoneração da responsabilidade criminal dos homens, precisamente pelo fato de que são o que são: homens

quinta-feira, 11 de abril de 2013

O apedrejamento do século XXI


Quando estou reunido com algum grupo de adultos, sempre lamento quando o assunto muda subitamente para o crime sórdido sobre o qual algum deles lia no jornal. As expressões de todos mudam: os rostos se contorcem, alguns lamentam o excesso de brandura das penas brasileiras e, às vezes, um mais ousado sugere punições com descrições meticulosas e brutais. A cena é comum.

Comum e antiga. Quando presencio os exemplos mais exaltados, com xingamentos e golpes de desabafo na mobília, fico com a impressão de que a única diferença entre aquele episódio e um apedrejamento são as pedras. O jornal sensacionalista é o apedrejamento do século XXI. Não é um fenômeno humano raro, podemos encontrar paralelos em quase todas as sociedades. Na Grécia Antiga, em tempos difíceis, de doença ou fome, os sacerdotes escolhiam um pária (chamado de pharmakós) para ser excluído da cidade¹. Na Idade Média, haviam decapitações em público e um tipo particular ficou famoso durante a Revolução Francesa, a guilhotina. A maioria dessas execuções era acompanhada por uma multidão que esbravejava contra os sentenciados.

Nos tempos modernos, quem cumpre essa função é principalmente o telejornal sensacionalista. Acredito que um dos motivos é uma espécie de gosto literário: os crimes escolhidos pela mídia e pela audiência se desenrolam como num romance policial, os telespectadores aguardam por novas pistas e evidências que incriminem o antagonista e vindiquem a vítima. Mas não acho que esse seja o maior motivo.

A causa principal me parece ser aquela que Contardo Calligaris expôs num artigo publicado na Folha há alguns anos.² Ele diz que o que faz as pessoas se envolverem nesse tipo de comportamento é a necessidade de se diferenciar: os alemães na Noite de Cristal queriam afirmar que não eram judeus, os racistas que linchavam negros nos Estados Unidos queriam reafirmar sua separação da população de ascendência africana, o povo da Oceania participava dos Dois Minutos de Ódio para assegurar-se de que não tinha sentimentos contrários ao Partido como aqueles declarados pelo rosto projetado na tela.

Porém, pode parecer inoportuno tratar de um tema desses num blog cristão, afinal, muitas dessas demonstrações de ódio foram promovidas por cristãos ao longo dos séculos – o arquidiácono do Corcunda de Notre-Dame vem à mente. Não acho que seja o caso. Primeiro porque tomar parte nessas práticas, não importa como a pessoa se auto-denomine, vai contra os próprios ensinamentos de Cristo. Jesus é um dos mais famosos opositores desse comportamento, Ele colocou a frase “quem nunca pecou que atire a primeira pedra” na língua popular. Além disso, foi veemente reformador de outra expressão comum em seu tempo, “olho por olho, dente por dente”, Ele dizia que se alguém nos batesse no rosto, devíamos oferecer-lhes o outro lado, não porque Jesus ignorava a justiça mas porque Ele enfatizava a humildade e a misericórdia, Sua doutrina ensina que se reconhecermos como nós mesmos somos ruins, tendemos a ver a falha alheia não com olhos de condenação mas de compaixão.³

Acredito que seja esse o principal defeito do sensacionalismo de casos policiais. G. K. Chesterton diz que uma das frases mais famosas de Thomas Carlyle era que os homens eram, na maior parte, tolos, ele diz que “o Cristianismo, com um realismo mais seguro e reverencial, diz que todos são tolos”⁴. Não adianta insultar os vícios dos criminosos da tevê com impropérios analgésicos. Apontamos a falha dele para dizermos para nós mesmos que somos diferentes, que não falhamos, acusamos para nos sentirmos absolvidos. Proponho um exercício diário diferente: ao invés de negar a nossa falibilidade, devemos aceitar essa verdade, ao invés de desviarmos dos nossos defeitos todos os dias, devíamos corajosamente os reconhecer. C. S. Lewis diz que “se você procurar a verdade, pode encontrar consolo no fim: se procurar consolo você não terá nem a verdade nem o consolo – apenas bajulação e esperança vazia e, no fim, desespero.”






1: http://global.britannica.com/EBchecked/topic/685818/pharmakos
2: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2404200826.htm
3: Ver Mateus 18:21-35
4: Grifo meu.

terça-feira, 19 de março de 2013

O Amor de Marius Pontmercy e a Miséria da Revolução: Reflexões Sobre o Musical Les Misérables


Recentemente assisti ao filme do musical Les Misérables. Saí do filme um pouco atordoado, tentando frisar as letras das canções para articular pensamentos que me pareciam importantes. O que eu ofereço aqui são algumas reflexões esparsas atiçadas pelo longa. Não pretendo oferecer uma resenha do filme, muito menos uma análise exaustiva. Quero apenas desenvolver considerações pontuais sobre a obra e seu enredo.
O que mais me interessa, enquanto leigo em cinema e interessado nos aspectos teóricos das manifestações culturais, é o enredo e as letras do musical. Quero fazer alguns apontamentos sobre o aspecto revolucionário que a obra traz, o que deve nos levar a uma série de outros desdobramentos.

*

Em Nome do Amanhã

Antes de mais nada, percebi-me preocupado em entender o que é que motivava os revolucionários, em sua maioria estudantes, a fazer uma revolução. A miséria das ruas de Paris é gritante, e serve como um diagnóstico. Os revolucionários pretendem se afastar dessa realidade, ou afastar o mundo todo dessa realidade. Mas o que eles pretendem colocar no lugar? Se estão se afastando da realidade atual, aonde querem chegar?

Em sua reunião revolucionária, às vésperas da execução do plano, os jovens cantam:

Red - the blood of angry men!           [Vermelho - o sangue de homens raivosos!]
Black - the dark of ages past!           [Preto - a escuridão de eras passadas!]
Red - a world about to dawn!           [Vermelho - um mundo prestes a despertar!]
Black - the night that ends at last!   [Preto - a noite que se finda enfim!]

Vemos, portanto, um ardente e raivoso (vermelho) desejo de romper com um passado tenebroso e cadavérico (preto), de promover o despertar de um novo dia e o findar de uma noite lúgubre. Note que esse dia que está por nascer não tem qualquer adjetivo. Não se sabe como ele será. Espera-se, somente, que seja diferente do que se tem então. Resume-se seu ímpeto no desejo de mudança. Tudo é feito em nome do amanhã:

There is a life about to start [Há uma vida por começar]
When tomorrow comes!        [Quando o amanhã chegar]

Agora, como se processa essa mudança? Monsieur Enjolras, um dos líderes revolucionários, explica:

Well, Courfeyrac, do we have all the guns?       [Bem, Courfeyrac, temos todas 
                                                                                                                             as armas?]
Feuilly, Combeferre, our time is running short. [Feuilly, Combeferre, nosso tempo 
                                                                                                                está se esgotando.]
Grantaire, put the bottle down!                          [Grantaire, largue essa garrafa!]
Do we have the guns we need?                           [Temos as armas que precisamos?]

As armas entram em cena. A violência é sine qua non para a efetivação do mundo prestes a despertar. A Revolução "precisa" de armas. Sabemos, portanto, que a Revolução não é nenhuma brincadeira de criança:

What's the price you might pay?  [Qual o preço que vocês podem vir a pagar?]
Is it simply a game                        [É simplesmente um jogo]
For rich young boys to play?      [Para jovens rapazes ricos jogarem?]

Definitivamente não. É uma empreitada que tem um "preço" alto, e esse preço pode ser o seu próprio sangue:

Will you give all you can give                     [Você dará tudo o que tem]
So that our banner may advance               [Para que nosso estandarte avance]
Some will fall and some will live                [Alguns cairão e alguns viverão]
Will you stand up and take your chance?  [Você se erguerá e se arriscará?]
The blood of the martyrs                            [O sangue dos mártires]
Will water the meadows of France!            [Molhará os prados da França!]  

O sangue, a morte e as vidas é o que se paga. Mas pelo que? Não sabemos ainda. Por enquanto, o simples avanço do estandarte.


A humanidade de Marius

Mas os revolucionários têm um problema. Um de seus líderes, Marius Pontmercy, parece vacilar diante da empreitada. Qual a fonte da dúvida? Uma mulher. Ou melhor, um amor.

Had you been there tonight              [Estivesse você lá nesta noite]
You might know how it feels            [Talvez soubesse a sensação]
To be struck to the bone                  [De ser atingido até os ossos]
In a moment of breathless delight!  [Em um momento de deleite sem fôlego!]
Had you been there tonight             [Estivesse você lá nesta noite]
You might also have known             [Talvez também soubesse]
How the world may be changed      [Como o mundo pode ser transformado]
In just one burst of light!                 [Numa só explosão de luz!]
And what was right seems wrong   [E o que era certo parece errado]
And what was wrong seems right!  [E o que era errado parece certo!]

O pobre Marius, portanto, foi vítima do amor. Mas Enjolras não aceita que isso se interponha entre Marius e a Revolução:

Marius, you're no longer a child      [Marius, você não é mais uma criança]
I do not doubt you mean it well       [Eu não duvido que isso seja sincero]
But now there is a higher call.         [Mas agora existe um chamado mais elevado] 
Who cares about your lonely soul?  [Quem se importa com sua alma solitária?]
We strive toward a larger goal        [Nós nos empenhamos rumo a um objetivo 
                                                                                                                              maior]
Our little lives don't count at all!     [Nossas pequenas vidas não valem de nada!]

Marius, não obstante, não consegue deixar de pensar em seus sentimentos, e parafraseia o próprio lema revolucionário, invertendo seu sentido do coletivo para o pessoal:

Red... I feel my soul on fire!               [Vermelho... Sinto minha alma em chamas!]
Black... My world if she's not there!  [Preto... Meu mundo se ela ali não estiver!]
Red... The color of desire!                 [Vermelho... A cor do desejo!]
Black... The color of despair!            [Preto... A cor do desespero!]

Eis aqui um momento de importante oposição no filme, que se mostra na paráfrase da cantiga. De um lado, Marius, um jovem rapaz que acabou de se apaixonar por Cosette, e, em função desse amor, passou a repensar a validade da Revolução diante do risco da morte. É como se somente agora a vida de Marius tivesse significado, e somente agora ele considerasse seu valor. Até então, sua vida era desprezível, exatamente como Enjolras coloca: nossas pequenas vidas não valem de nada! Mas agora a vida de Marius tinha sentido, e ele não estava mais tão disposto a pô-la a perder. Por isso o que era certo parece errado, e o que era errado parece certo. Perceba, contudo, que Enjolras considera uma atitude infantil trocar a revolução, o chamado mais elevado, o objetivo maior, em nome de um simples amor, como se o amor fosse algo essencialmente pueril.

Também outros revolucionários não perderam oportunidade de zombar de seus sentimentos:

You talk of battles to be won           [Você fala de batalhas a serem vencidas]
And here he comes like Don Ju-an  [E agora ele vem bancando o Don Ju-an]
It's better than an o-per-a!               [É melhor que uma ó-pe-ra!]

É uma hierarquização explícita em que os sentimentos individuais dos homens tem muito menos valor do que aquilo que está por se realizar, o bem maior, o objetivo maior. Observemos, porém, que ainda não se sabe o que se instalará após a Revolução, mas existe  o bastante para crer que será melhor do que o que se tem no momento.

Portanto, o amor é secundário para os revolucionários, é marginal diante do objetivo maior a ser conquistado. Mas o que o amor representa para Marius?

In my life                                                      [Em minha vida]
She has burst like the music of angels    [Ela explodiu como a música dos anjos]
The light of the sun                                   [A luz do sol]
And my life seems to stop                         [E minha vida parece ter parado]
As if something is over                             [Como se algo tivesse acabado]
And something has scarcely begun.        [E algo mal tivesse começado]

O amor de Marius dá vida a ele, como os raios do sol vivificam a relva. O amor preenche sua existência, o amor orienta sua vida e lhe confere razão de ser, desperta-lhe para algo novo. O amor de Marius abre seus olhos para a vida e para o real valor da vida. É por isso que ele hesita diante da Revolução. Sua alma ganha valor. O amor é sua causa. Em uma palavra: o amor humanizou Marius. Até então, ele era uma mera ferramenta, cuja alma nada valia, na execução de um plano maior. Agora ele era um homem. Ele sentia, finalmente, sua alma. Marius se tornara, enfim, humano. A Revolução era, para Marius, uma causa vazia, porque jamais pôde conscientizá-lo do valor da vida.

Pode-se objetar que, engajado na Revolução, Marius preocupava-se mais com a vida dos outros, em um genuíno gesto de altruísmo, do que ao prestar amor a Cosette, um sentimento particular e individual - para não dizer egoísta. Contudo, é lícito indagar: se Marius pouco valorizava sua própria vida antes de ser arrebatado pelo amor, como poderia compreender o valor da vida daqueles por quem se dispunha a morrer? No fundo, Marius era um revolucionário inconsciente de sua luta. Lutava por vidas, mas nada sabia sobre seu valor. E, quando o descobriu, vacilou. Mas foi precisamente o amor que lhe deu maior coragem para a luta. Uma luta, agora, repleta de significado. Duvido muito que Marius teria ameaçado explodir a si mesmo e ao barril de pólvora não fosse seu amor por Cosette.


A Alternativa: A Revolução Interior de Jean Valjean

O incômodo dos revolucionários é legítimo, deixemos isso bem claro. A miséria é um mal, e deve ser combatida. A injustiça é deletéria, e deve ser refreada. Poucos teóricos políticos ao longo da história discordariam disso. A divergência é sempre nos meios. Como remediar a doença?

Por tudo o que foi dito acima, acredito que a opção revolucionária seja nefasta. Ela desumaniza o homem, esvazia as vidas de valor. Os revolucionários são, mais do que quaisquer outros do filme, Les Misérables.  A via revolucionária lança mão da violência como elemento indispensável, propõe um futuro desconhecido na esperança de que seja melhor, e está disposta a passar por cima da vida, do amor, da paz e dos sentimentos humanos em nome de um "bem maior". Um bem, diga-se de passagem, que na maioria das vezes diz zelar pela vida, pelo amor, pela paz e pelos sentimentos humanos, exatamente aquilo que fustiga. Como disse Carlos I, meses antes de ser decapitado na Inglaterra,

In the king's name the king himself's uncrown'd; [Em nome do rei, o próprio rei é 
                                                                                                                        destronado;]
So doth the dust destroy the diamond.                 [Assim a poeira destrói 
                                                                                                                        o diamante.]

Cruzaremos então os braços, na esperança de que o tempo, indelevelmente progredindo rumo à igualdade social, sane todas as mazelas da humanidade? Longe disso. Quem nos oferece uma alternativa é Jean Valjean.

Valjean, no início do filme, sofre uma transformação, uma conversão, uma metanoia. Diante do vislumbre da maldade e do pecado inerente a si, em face ao amor que lhe foi demonstrado pelo senhor que o acolheu, Valjean envergonha-se, arrepende-se e sofre uma transformação interior, selando o compromisso de ser uma nova criatura (2Cor 5:17). É evidente que sua transformação foi essencialmente espiritual:

He told me that I have a soul,           [Ele me disse que eu tenho uma alma,]
How does he know?                            [Como ele sabe?]
What spirit comes to move my life? [Que espírito vem mover minha vida?]
Is there another way to go?             [Existe outro caminho a seguir?]
[...]                                                       [...]
I'll escape now from the world         [Escaparei agora do mundo]
From the world of Jean Valjean      [Do mundo de Jean Valjean]
Jean Valjean is nothing now            [Jean Valjean não é nada agora]
Another story must begin!                [Uma outra história deve começar!]

Qual o resultado dessa mudança? Valjean tornou-se prefeito de Paris e dono de uma fábrica. Conquistou o respeito e a posição privilegiada contra a qual os revolucionários estariam prontos a ralhar. As funcionárias de sua empresa, contudo, demonstram levar uma vida minimamente digna. O suficiente para se ocuparem frivolamente com a vida de Fantine, pelo menos, e certamente mais digna do que a vida dissoluta da prostituição, na qual Fantine foi despejada, e de inescrupulosidade e calhordice que caracteriza as peripécias dos Thénardier. Valjean, em seu amor e compromisso com a retidão moral, auxiliou centenas de pessoas a viverem de forma digna:

I am the master of hundreds of workers.  [Eu sou senhor de centenas de 
                                                                                                        trabalhadores.]
They all look to me.                                   [Todos eles contam comigo.]
How can I abandon them?                        [Como eu posso abandoná-los?]
How would they live                                 [Como eles viveriam]
If I am not free?                                       [Se eu não estivesse livre?]

Assim, quando Jean Valjean ouve que um inocente seria acusado em seu lugar, preocupa-se não apenas com sua própria consciência ou fama, mas também com o risco em que estariam aquelas mulheres que lhe eram empregadas e suas famílias. O revolucionário certamente diria que em nome de uma causa maior, aquela vida inocente de nada valeria. Valjean, em oposição a esse espírito, e em nome da execução do que é justo e correto, apresentou-se em tribunal para livrar uma só alma do tormento, colocando em risco todas as outras.

Ao descobrir a história de Fantine e a fortuna de sua filha, Cosette, Valjean se coloca em prontidão para reparar a situação. O que Valjean nos mostra é que é possível redimir vidas, é possível sanar a miséria por meio das relações pessoais. Aliás, é só aí em que isso é possível. Apenas homens podem ajudar homens, e isso se faz por contágio, quase como que por uma praga filantrópica. Valjean foi contaminado pelo amor no início do filme, e isso o levou a se importar com as vidas ao seu redor.

Valjean jamais tomou partido da Revolução. Quando colocou-se por detrás das barricadas, foi para proteger Marius, desiderato de Cosette. Seus motivos são sempre emocionais e pessoais. Valjean nem mesmo canta as músicas que os revolucionários cantam em seu acampamento. É como se discordasse de sua empreitada, discordasse de que seja legítima uma Revolução impessoal, que arrisca vidas em nome de um futuro incerto. A Revolução, talvez dissesse Jean Valjean se inquirido, deve ser de homem para homem, de dentro para fora, do arrependimento interno para o amor e a caridade externa.


Do amor

Que dizer do amor?

Foi ele que deu sentido à vida de Marius. Foi ele que deu vida à vida de Marius. Foi o amor que o fez valorizar o que há de mais precioso no homem. Esse mesmo amor foi o que tocou Jean Valjean e o fez se preocupar com seu próximo. O amor foi o que lhe abriu os olhos.

O amor zombado e espicaçado por Grantaire e Enjolras, os revolucionários, foi o que deu vida e apaziguou a miséria dos miseráveis, do início até o final do filme. A Revolução, por sua vez, produziu centenas de mortes, engendrou dor e tristezas vãs. O que mais esperar de uma filosofia que considera que as nossas pequenas vidas não valem de nada? No caso de Valjean e de Marius, é o amor quem move todas suas boas ações. No caso dos revolucionários, é o amanhã.

Sir Herbert Butterfield disse certa vez que muito mais se ocupou em odiar o capitalismo do que em prestar auxílio aos pobres. Eu diria, ainda, que muito mais se preocupou com as panaceias do amanhã do que com o mal nosso de cada dia. Enquanto os revolucionários viveram na utopia do futuro, Valjean viveu a dolorosa realidade do presente.


Da Empatia Revolucionária e da Glória de Cristo

Como negar a empatia que os revolucionários promovem nos telespectadores? Isso se aplica no dia a dia. É muito sedutor ver um jovem lutando com a própria vida em nome de uma causa, notoriamente se a causa é em prol de terceiros. O suposto zelo e amor que movem os revolucionários em benefício de outrem é de arrepiar os ossos. Não há como negar. Daí decorrem os êxtases revolucionários que movem milhares de pessoas, e que tornaram possíveis não só a Revolução Francesa como a Revolução Russa e boa parte dos levantes na história.

O que faz com que o homem simpatize com os movimentos revolucionários é a causa eficiente que os move: a entrega em nome de um bem maior, a negação de sua vida em favor dos outros, a oferta do próprio sangue pela redenção dos homens, a garantia de um mundo sem sofrimento, sem dor, sem injustiça e sem lágrimas. Tudo isso é absolutamente belo, e não espanta que arranque lágrimas e conquiste adeptos.

O que pouco se percebe é que todas essas coisas já foram realizadas por Jesus Cristo. O Cristo entregou-se a si mesmo pela redenção dos homens, para livrar-lhes de uma vida nefasta, para garantir a paz e a alegria, para assegurar a instauração de um mundo melhor. É Cristo, também, quem trará um mundo onde não há choro nem ranger de dentes, onde dor e sofrimento são elementos ausentes. Isso também perfigura no musical. Na última música, há um refrão que não quer calar:

Will you join in our crusade?                  [Você se juntará à nossa cruzada?]
Who will be strong and stand with me? [Quem será forte e permanecerá comigo?]
Somewhere beyond the barricade          [Em algum lugar além da barricada] 
Is there a world you long to see?           [Existe um mundo que você anseia 
                                                                                                                          por ver?]

Mas a resposta, ao final de todo o enredo, não é a Revolução humana, e o que está além da barricada não é a utopia terrena da felicidade:

They will live again in freedom                [Eles viverão novamente em liberdade]
In the garden of the Lord.                        [No jardim do Senhor.]
They will walk behind the plough-share, [Eles andarão atrás do arado,]
They will put away the sword.                 [Eles colocarão as espadas de lado]
The chain will be broken                         [A corrente será quebrada]
And all men will have their reward.        [E todos os homens terão sua 
                                                                                                                  recompensa]

Traduzindo, o completo fim das injustiças e desigualdades se encontra no mundo do além. A verdadeira barricada é o nosso mundo, e a única esperança de solução plena é o outro mundo. O que, como dissemos, não nos desonera da ação humana.

Assim, a Revolução dos homens encanta porque ela é uma secularização da Revolução de Cristo. A empreitada revolucionária, com seus "nobres" fins, é apenas uma sombra, uma imagem imperfeita do que Cristo fez de uma vez por todas e perfeitamente. O problema é que os homens continuam buscando revoluções, continuam procurando fazer com suas próprias mãos o que Cristo fez com seu sangue. Jesus nos redimiu de uma vez por todas, para que déssemos prosseguimento à sua obra de forma pessoal. Assim como a Revolução de Cristo foi individual e em nome de todos, assim também a redenção de Valjean foi individual e afetou a todos ao seu redor. Essa é a verdadeira Revolução que deve ser empreendida.

*

Não nos esqueçamos, jamais, que somos indivíduos, sob pena de desprezarmos o valor da vida. Não nos esqueçamos de que somos humanos. Não nos esqueçamos que temos uma vida inalienável, porque criada por Deus, que temos sentimentos impreteríveis e que, enquanto indivíduos, temos nomes. É a inconsciência dos nomes que promove o genocídio. É a inconsciência dos nomes que promove os abortos. É a inconsciência do indivíduo que embota o valor da vida.

Se você também assistiu ao filme e saiu simpatizante dos revolucionários, convido-lhe a pensar que a nobreza dos revoltosos não passa do reflexo da glória de Cristo e do que ele fez por você. E se você acha que os revolucionários foram os heróis, não se esqueça que foi Valjean quem mais amou e praticou o bem. Não se esqueça, também, que ele tinha nome. Ao passo que os revolucionários clamaram:

Who's there?                  [Quem está aí?]
The French Revolution! [A Revolução Francesa!],

Jean Valjean asseverou:

Who am I? Who am I? [Quem sou eu? Quem sou eu?]
I am Jean Valjean!       [Eu sou Jean Valjean!]

*

E, ao final,
Deixemos a palavra com o musical,
Que nos diz que a revolução passará,
Mas que o amor verdadeiro, este, se eternizará:


Here they talked of revolution.     [Aqui eles falaram de revolução.]
Here it was they lit the flame.       [Aqui foi que eles acenderam a chama.]
Here they sang about `tomorrow' [Aqui eles cantaram sobre o "amanhã"]
And tomorrow never came.          [E o amanhã nunca chegou.]

-

Take my hand                               [Tome minha mão]
And lead me to salvation              [E leve-me à salvação]
Take my love                                [Tome meu amor]
For love is everlasting                 [Pois o amor é eterno]
And remember                             [E lembre-se]
The truth that once was spoken  [Da verdade que uma vez foi dita]
To love another person               [Amar outra pessoa]
Is to see the face of God.            [É contemplar a face de Deus]

*

Abraços!

Com amor em Cristo,


Pedro