terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Repensando o Divórcio entre a Ciência e a Religião, Parte I: O Amor de Brutus

Saudações aos leitores!

Com este post inicio uma série pessoal, na esperança de que possamos, juntos, colocar em xeque algumas suposições inquestionáveis acerca do binômio ciência-religião. Espero que aproveitem!

*

"Em toda a história moderna, a interferência na ciência em nome do suposto interesse da religião, não importa quão consciente tais interferências possam ter sido, resultou no mais terrível mal para ambas religião e ciência, invariavelmente; e, por outro lado, toda investigação científica desembaraçada, não importa quão perigosa para a religião alguns de seus estágios possam ter parecido na época, resultou invariavelmente no mais alto bem para ambas religião e ciência"

Andrew Dickson White, A History of Warfare of Science With Theology in Christendom (1896)

Que nos diz esse texto?

Que existe uma tensão no relacionamento entre ciência e religião. Que a ciência, quando livre, traz benefícios incontestáveis à empreitada científica em si, e também para a própria religião. E que a religião, pelo contrário, quando ingere em tópicos científicos acarreta irremediavelmente em prejuízo para o saber científico e para si própria. A solução? Apartá-los. Demover os valores religiosos das investigações científicas, separar cirurgicamente o que compete à ciência e o que resta para a religião, traçar uma linha de segurança em torno dos laboratórios e implantar tornozeleiras eletrônicas nos sacerdotes.

Assim é que a relação entre ciência e religião é vista e promovida pela maioria da comunidade científica e do senso comum. Principalmente do senso comum. Quando muito, alguns cientistas, ao invés da oposição ferrenha, meramente silenciam sobre os valores religiosos. Porque eles não têm razão de ser no universo científico. São valores "subjetivos", e "cada um tem o seu". Se não prejudicam, também não fazem a menor diferença no trabalho científico e acadêmico. Religião é uma coisa, Ciência é outra: não as misturemos. Essa é a mensagem. E eu arriscaria dizer que a maioria dos leitores ou pensa precisamente dessa forma ou considera uma teoria bastante válida.

É uma mensagem que parece natural, que apela para a obviedade da coisa. Mas será mesmo? Será tão óbvio e natural, tão indiscutivelmente verdadeiro que existe esse conflito irreparável entre ciência e religião?

Quero defender, na série de posts que começo agora, um sólido e sonoro não. Quero oferecer dois post de cunho mais teórico sobre o assunto, incluindo este, e depois pretendo mergulhar em uma série de mitos que são comumente professados como verdade acerca do relacionamento entre ciência e religião. Quais mitos?

Por exemplo, o mito de que os medievais imaginavam que a terra fosse plana, o mito de que Giordano Bruno foi um exímio astrônomo queimado pela Inquisição, o mito de que Galileu foi preso e torturado pela Igreja Romana, o mito de que o papa se opôs ferozmente à nova descoberta da anestesia, e muitos outros mitos agregados. Mitos. E por mitos quero dizer, simplesmente, mentiras. Há um complexo mitológico que se mobiliza para sustentar a tese de que a ciência, desde o século XVII, vem ganhando terreno sobre a religião, e que terminou por sepultar o Deus cristão em algum momento do século XIX ou XX.

Quero defender que essa ideia não é natural, mas sim naturalizada. Não foi sempre que se pensou dessa forma, não é uma obviedade. Esse tipo de leitura, na verdade, é extremamente recente, e pode ser rastreado historicamente. Não é uma verdade, é uma proposta, não é a realidade mais evidente, é uma filosofia. E exige-se um esforço hercúleo para se desvincular dela.

*

Ilustremos o problema. 

Por qual motivo o budismo teria surgido na Índia Antiga, e não na Europa Medieval? Ou por que a física quântica desponta no Ocidente, no século XX, e não na Grécia Antiga? Ainda, por que os movimentos artísticos de vanguarda acontecem na Europa e América contemporânea, e não no Japão do Xogunato? 

A resposta é muito simples, certo? Contexto histórico. Não era possível que Virgílio tivesse escrito Romeu e Julieta. Costumamos nos esquecer, por exemplo, de que Lutero não era protestante, mas católico, que Einstein não era einsteiniano, mas newtoniano, que Descartes não era cartesiano, mas aristotélico, e que Cristo não era cristão, mas judeu. Os homens são sempre gestados em um conjunto de ideias. Lutero não nasceu protestante, nem Einstein, einsteiniano. 

Que tem isso a ver com a relação entre a Ciência e a Religião? Poderíamos fazer a mesma pergunta para a ciência moderna, i.e., newtoniana. Por que a ciência moderna nasce na Europa do século XVII e não na civilização Chinesa? Esta pergunta já foi feita por um historiador da ciência, Joseph Needham. Que respostas encontrou ele? Dentre elas, Needham argumenta que o Cristianismo foi um grande diferencial da Europa setecentista para o surgimento da ciência moderna. Needham defende que a ideia de um Deus Criador, pessoal e inteligente, assegura a noção de leis regulares na natureza que podem ser descobertas pelo homem. Isso estaria ausente em toda a filosofia chinesa, onde o confucionismo, uma filosofia eminentemente social, triunfou sobre o taoísmo e seu apreço pela natureza. 

Questão de lógica: novas ideias só podem surgir alimentadas por ideias já existentes. A ciência, como a entendemos hoje, é filha direta de uma cultura embebida em Cristianismo. Que tem sido feito com essa informação? Colocam-se os patriarcas da ciência - Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Boyle - como homens fora de seu tempo e de sua cultura, e que receberam revelações aculturais (a-cristãs) que se opunham ao Cristianismo desde seu mais minúsculo embrião. Ideias novas e fascínoras, que nada devem às ideias vigentes de então e que buscam, desde sempre, combatê-las. Como se Brutus não tivesse nascido e crescido em pleno amor por Júlio César, mas sim com um ódio inato, aguardando a melhor oportunidade para o regicídio.

É a negação mais plena da verdade mais natural. A ciência não está em conflito desgarrado com a religião desde os primórdios de sua anunciação. É bem o inverso. A ciência é filha legítima da religião. A ciência é fruto do casamento Ocidental entre o Cristianismo e a filosofia grega. Retomarei o assunto precisamente nesse ponto.

Encerro com as palavras do próprio Needham, que falam por si só.

"Não é que não houvesse uma ordem na Natureza para os chineses, mas que não era uma ordem ordenada por um ser racional e pessoal, e, portanto, não havia qualquer garantia que outros seres pessoais racionais seriam capazes de pronunciar, em sua própria linguagem terrena, o código de leis divino pré existente que Ele formulou previamente. Não havia qualquer confiança que o código das leis da Natureza poderiam ser desvelados e lidos, porque não havia qualquer segurança que um ser divino, ainda mais racional que nós mesmos, tenha formulado um tal código capaz de ser lido." 



Abraços!