quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Um ano de blog. Sonho de uma Noite de Verão: Homo beaglis.

Um ano de vida e muitos meses de inatividade. Lamentando o segundo, este blog comemora o primeiro. No dia 31 de outubro de 2012, eusouracional veio à vida. Dia das bruxas e dia da Reforma Protestante – dois grupos que solidariamente já compartilharam o abafadiço da fogueira. (Licença para piada vil e ligeiramente falaciosa)

Pedimos desculpas aos leitores pelo silêncio e esperamos surpreendê-los ao dizer que o blog não encerrou suas atividades. Alguns de nós estamos envolvidos em um novo projeto, a ser lançado em fevereiro. Outros estão cheios de ideias em potência, que aguardam um sopro final para se tornarem ato. 

Assim sendo, e já fazendo um trocadilho irresistível no dia da Reforma, sejam indulgentes para conosco. Abaixo vai um post simples e breve sobre a cachorrice que anda rolando por aí.

*

“Quanto mais conheço os homens, mais admiro os cães”. É uma dessas frases anônimas que poderia ser atribuída à Clarice Lispector e que sempre circulou inofensiva por aí. Nas últimas semanas o aforismo ganhou um significado bem real. Poupo os leitores dos fatos sobre o Instituto Royal, os beagles e tudo aquilo. 

Minha questão provém de uma estupefação com a desumanidade em relação aos homens, não em relação aos cães (que não são humanos, sói lembrar). Ao descobrirem o inédito fato que animais são usados como cobaias para as ciências médicas, muitas vozes, num elã de indignação, decidiram que isso deve cessar. 

Alguns, quando inquiridos sobre uma possível solução para o teste das drogas, não tiveram qualquer pejo de anunciar: que se empreguem presidiários, essa corja de malfeitores, essa malta de facínoras. O argumento é que, enquanto os caninos são inofensivos, homens matam, estupram, torturam, roubam, queimam vivos, decapitam etc. Homens sucedem na proeza de serem moralmente inferiores aos beagles. É disso que se trata. Poderíamos simplesmente nos aturdirmos com essa proposta. Mas ela foi levantada por um número suficiente de pensadores para merecer mais do que isso. 

O pressuposto necessário para que se possa aventar essa ideia é uma visão de homem enquanto parte constitutiva e exclusiva do reino animal. O homem não é mais que uma besta no campo, um bípede no topo da cadeia evolutiva. Enquanto tal, ele é moralmente emparelhado a todos os outros animais. Como o presidiário comete delitos e os beagles são isentos de contravenções, a justiça demanda que o primeiro seja punido e o segundo seja inocentado. Como os animais beagles logram uma superioridade moral em relação aos animais homens, estes são candidatos muito mais apropriados ao posto de cobaias do que aqueles.

Só uma visão naturalista legitima as cobaias humanas. Andrew Goliszek mostrou as abominações que essa antropologia pode ocasionar por meio da eugenia. A contemplação do homem como um conjunto de células tão bom quanto qualquer outro animal ou qualquer outra coisa deve ser temida e rejeitada, sob o risco de um novo réquiem pela raça humana. O homem é criado de forma especial por Deus. Algo no homem se ausenta em qualquer outro ser: a imagem e semelhança do ser supremo, o sopro de vida que distingue a humanidade da matilha. Infratores morais não são animais raivosos, transgressores de uma ética animalesca. São homens falhos, corrompidos pelo pecado, mas que preservam sua humanidade, não obstante. São homens passíveis de arrependimento, de conversão moral, de edificação espiritual. Não se encontram, nunca, abaixo de um canino, por pior que sejam. 

Homens e cães, meninos e lobos, não compartilham um código moral. Animais não possuem moralidade, são vítimas da pura necessidade. Não existe justo e injusto no reino animal. Nenhuma leoa foi jamais conduzida a um tribunal, humilhada diante de provas gráficas da NatGeo, e condenada por conduta desrespeitosa aos veados do Serengeti. Não há moralidade animal. Quando um beagle não xinga, não mata, não estupra, não rouba, ele está agindo conforme sua natureza: é, afinal, um animal. É necessário que assim seja. Os cães não são corrompidos pela maldade nem escravos do pecado. Exaltá-los por isso é o mesmo que dar palmas às árvores que não saem do lugar, enquanto larápios perversos andam de um lado para o outro. O homem é um – e o único – ser moral, e deve ser contemplado enquanto tal, tratado enquanto tal, julgado enquanto tal. Ninguém condena uma pedra por não ser uma maçã. Nivelar o homem a um cão, criar uma espécie nova de homem, um Homo beaglis, é um disparate. 

A implementação de experimentos médicos em infratores vem cheio do discurso do “duplo benefício”. De um lado, pune-se, de outro, lucra-se. Que mal tem? É nefanda a perspectiva da punição exclusiva, sem qualquer forma de reabilitação, de resgate, de reeducação do contraventor. Não passa, isso, de vingança. Transfazer os presídios em imensos laboratórios é formalizar a ideia de que não há salvação para delinquentes, é promover o ódio aos fautores do delito, é sagrar a vingança como justiça. E apenas Deus, o justo juiz, tem essa licença e poder.

Por fim, é sempre relevante lembrar o mandato cultural de Gênesis e o objetivo da ciência. 

“E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.” (Gn 1:28)

Não é uma sugestão, é uma ordem. Não é, também, um alvará de torturas, uma licença para sevícias. É o reconhecimento de Deus de que homens, independente de nossas simpatias animalescas e antipatias antrópicas, são ontologicamente superiores aos animais. É também a solução de Deus para remediar os efeitos da Queda. Dores de parto, infertilidade da terra, doenças, tudo isso que há no mundo, fruto do pecado humano, deve ser sanado pela sujeição e cooperação das outras criaturas de Deus. 

Titânia apaixonada por um asno em Sonho
de uma Noite de Verão, de Shakespeare.
Amar aos animais como seres morais é uma atitude que coloca seriamente em questão qualquer conceito de humanismo professado por seus amantes. Inversamente, enxergar em presos, homicidas e infratores de alto escalão um reservatório de cobaias em prol da humanidade é trair o próprio conceito de humanidade num oxímoro doentio. É de uma desumanidade tal que, seguindo sua lógica, os próprios propositores desse desatino deveriam ser imediatamente conduzidos algemados ao laboratório. Sua sorte é que eles mesmos não são levados a sério. É tempo, portanto, dos homens despertarem de seu sonho de uma noite de verão, do delírio mágico impingido pelas travessuras puckianas da ignorância brasileira, de desfazerem-se do hábito de Titânia e ajuizarem-se de que homens valem mais que asnos – e que beagles também.