terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Repensando o Divórcio entre a Ciência e a Religião, Parte I: O Amor de Brutus

Saudações aos leitores!

Com este post inicio uma série pessoal, na esperança de que possamos, juntos, colocar em xeque algumas suposições inquestionáveis acerca do binômio ciência-religião. Espero que aproveitem!

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"Em toda a história moderna, a interferência na ciência em nome do suposto interesse da religião, não importa quão consciente tais interferências possam ter sido, resultou no mais terrível mal para ambas religião e ciência, invariavelmente; e, por outro lado, toda investigação científica desembaraçada, não importa quão perigosa para a religião alguns de seus estágios possam ter parecido na época, resultou invariavelmente no mais alto bem para ambas religião e ciência"

Andrew Dickson White, A History of Warfare of Science With Theology in Christendom (1896)

Que nos diz esse texto?

Que existe uma tensão no relacionamento entre ciência e religião. Que a ciência, quando livre, traz benefícios incontestáveis à empreitada científica em si, e também para a própria religião. E que a religião, pelo contrário, quando ingere em tópicos científicos acarreta irremediavelmente em prejuízo para o saber científico e para si própria. A solução? Apartá-los. Demover os valores religiosos das investigações científicas, separar cirurgicamente o que compete à ciência e o que resta para a religião, traçar uma linha de segurança em torno dos laboratórios e implantar tornozeleiras eletrônicas nos sacerdotes.

Assim é que a relação entre ciência e religião é vista e promovida pela maioria da comunidade científica e do senso comum. Principalmente do senso comum. Quando muito, alguns cientistas, ao invés da oposição ferrenha, meramente silenciam sobre os valores religiosos. Porque eles não têm razão de ser no universo científico. São valores "subjetivos", e "cada um tem o seu". Se não prejudicam, também não fazem a menor diferença no trabalho científico e acadêmico. Religião é uma coisa, Ciência é outra: não as misturemos. Essa é a mensagem. E eu arriscaria dizer que a maioria dos leitores ou pensa precisamente dessa forma ou considera uma teoria bastante válida.

É uma mensagem que parece natural, que apela para a obviedade da coisa. Mas será mesmo? Será tão óbvio e natural, tão indiscutivelmente verdadeiro que existe esse conflito irreparável entre ciência e religião?

Quero defender, na série de posts que começo agora, um sólido e sonoro não. Quero oferecer dois post de cunho mais teórico sobre o assunto, incluindo este, e depois pretendo mergulhar em uma série de mitos que são comumente professados como verdade acerca do relacionamento entre ciência e religião. Quais mitos?

Por exemplo, o mito de que os medievais imaginavam que a terra fosse plana, o mito de que Giordano Bruno foi um exímio astrônomo queimado pela Inquisição, o mito de que Galileu foi preso e torturado pela Igreja Romana, o mito de que o papa se opôs ferozmente à nova descoberta da anestesia, e muitos outros mitos agregados. Mitos. E por mitos quero dizer, simplesmente, mentiras. Há um complexo mitológico que se mobiliza para sustentar a tese de que a ciência, desde o século XVII, vem ganhando terreno sobre a religião, e que terminou por sepultar o Deus cristão em algum momento do século XIX ou XX.

Quero defender que essa ideia não é natural, mas sim naturalizada. Não foi sempre que se pensou dessa forma, não é uma obviedade. Esse tipo de leitura, na verdade, é extremamente recente, e pode ser rastreado historicamente. Não é uma verdade, é uma proposta, não é a realidade mais evidente, é uma filosofia. E exige-se um esforço hercúleo para se desvincular dela.

*

Ilustremos o problema. 

Por qual motivo o budismo teria surgido na Índia Antiga, e não na Europa Medieval? Ou por que a física quântica desponta no Ocidente, no século XX, e não na Grécia Antiga? Ainda, por que os movimentos artísticos de vanguarda acontecem na Europa e América contemporânea, e não no Japão do Xogunato? 

A resposta é muito simples, certo? Contexto histórico. Não era possível que Virgílio tivesse escrito Romeu e Julieta. Costumamos nos esquecer, por exemplo, de que Lutero não era protestante, mas católico, que Einstein não era einsteiniano, mas newtoniano, que Descartes não era cartesiano, mas aristotélico, e que Cristo não era cristão, mas judeu. Os homens são sempre gestados em um conjunto de ideias. Lutero não nasceu protestante, nem Einstein, einsteiniano. 

Que tem isso a ver com a relação entre a Ciência e a Religião? Poderíamos fazer a mesma pergunta para a ciência moderna, i.e., newtoniana. Por que a ciência moderna nasce na Europa do século XVII e não na civilização Chinesa? Esta pergunta já foi feita por um historiador da ciência, Joseph Needham. Que respostas encontrou ele? Dentre elas, Needham argumenta que o Cristianismo foi um grande diferencial da Europa setecentista para o surgimento da ciência moderna. Needham defende que a ideia de um Deus Criador, pessoal e inteligente, assegura a noção de leis regulares na natureza que podem ser descobertas pelo homem. Isso estaria ausente em toda a filosofia chinesa, onde o confucionismo, uma filosofia eminentemente social, triunfou sobre o taoísmo e seu apreço pela natureza. 

Questão de lógica: novas ideias só podem surgir alimentadas por ideias já existentes. A ciência, como a entendemos hoje, é filha direta de uma cultura embebida em Cristianismo. Que tem sido feito com essa informação? Colocam-se os patriarcas da ciência - Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Boyle - como homens fora de seu tempo e de sua cultura, e que receberam revelações aculturais (a-cristãs) que se opunham ao Cristianismo desde seu mais minúsculo embrião. Ideias novas e fascínoras, que nada devem às ideias vigentes de então e que buscam, desde sempre, combatê-las. Como se Brutus não tivesse nascido e crescido em pleno amor por Júlio César, mas sim com um ódio inato, aguardando a melhor oportunidade para o regicídio.

É a negação mais plena da verdade mais natural. A ciência não está em conflito desgarrado com a religião desde os primórdios de sua anunciação. É bem o inverso. A ciência é filha legítima da religião. A ciência é fruto do casamento Ocidental entre o Cristianismo e a filosofia grega. Retomarei o assunto precisamente nesse ponto.

Encerro com as palavras do próprio Needham, que falam por si só.

"Não é que não houvesse uma ordem na Natureza para os chineses, mas que não era uma ordem ordenada por um ser racional e pessoal, e, portanto, não havia qualquer garantia que outros seres pessoais racionais seriam capazes de pronunciar, em sua própria linguagem terrena, o código de leis divino pré existente que Ele formulou previamente. Não havia qualquer confiança que o código das leis da Natureza poderiam ser desvelados e lidos, porque não havia qualquer segurança que um ser divino, ainda mais racional que nós mesmos, tenha formulado um tal código capaz de ser lido." 



Abraços!

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Jornal "Estado de São Paulo" abre espaço para articulista escrever sobre o conservadorismo

Nessa sexta-feira, 16 de novembro, João Mellão Neto, que já ocupou vários cargos na alta política nacional, subscreve um artigo com o título "Eu sou conservador" no caderno de opinião do jornal Estado de São Paulo. A dica me foi dada pelo colega Pedro Piza, que tem participado com comentários aqui no blog EU SOU Racional.

O artigo é oportuno para as questões que foram tratadas na nossa postagem sobre a reeleição de Barack Obama, e que voltaremos a tratar no futuro. Copio-o abaixo. Ao final do artigo faço um ligeiro mas oportuno comentário.



Eu sou um conservador


JOÃO MELLÃO NETO 

Embora conservadorismo, na cabeça das pessoas, lembre mofo e bolor, a verdade é que o conservadorismo está voltando a ser levado a sério por aqui. E quais são as principais teses defendidas pelos conservadores?
A principal delas afirma que é muita pretensão a nossa de querer virar o mundo do avesso, ignorando toda a experiência, os ajustes e o processo de tentativas e erros obtidos em milênios de civilização. Tal abandono do passado pode ser útil no que tange às ciências exatas, mas revela-se quase sempre desastroso quando aplicado às ciências humanas. Na História humana, os grandes avanços sempre se deram pela evolução, nunca pela revolução. As grandes revoluções, como a francesa ou a russa, sempre foram muito eficientes na derrubada das instituições que já existiam, mas nunca souberam como pôr outras melhores em seu lugar.
Outra tese, dentre as principais, se resume numa frase proclamada por sir Isaac Newton (1643-1727): àqueles que lhe indagavam como conseguira formular a Teoria da Física Mecânica, respondia que nada fizera de mais, apenas "se debruçara sobre os ombros de gigantes". Queria o cientista inglês dizer que nada daquilo seria possível se não tivesse contado com o conhecimento acumulado por todos os que o precederam. Os conservadores também pensam dessa forma. A realidade tal qual a conhecemos é o produto de milênios de tentativas, erros e acertos. Sendo assim, é muito pouco provável que nós, modernos, venhamos a fazer alguma grande descoberta em termos de moral ou de política.
Filósofos de araque existem em profusão. Todos pregam mudanças radicais na natureza humana. E foram justamente eles - que prometiam a perfeição do homem e da sociedade - que transformaram grande parte do século passado num verdadeiro inferno terrestre.
O ceticismo quanto à perfeição humana é outro aspecto importante do pensamento conservador. Nós conseguimos realizar mudanças na natureza exterior. Já a natureza humana se tem mostrado praticamente imutável. O conservador não acredita que exista algum homem tão acima da média, tão isento de paixões e preconceitos que se possa com tranquilidade entregar-lhe um poder sem limites. Assim sendo, a melhor forma de governo é mesmo a democracia. Esta dispõe dos freios e contrapesos (checks and balances) necessários para refrear logo no nascedouro qualquer tentação totalitária. A sociedade possui anticorpos. E eles são acionados sempre que há exorbitância de poder.
O grande autor moderno do conservadorismo é Russell Kirk (1918-1994) e no passado foi Edmond Burke (1729-1797). Este último, além de ter sido o grande precursor dos princípios conservadores, notabilizou-se por ter escrito um livro intitulado Reflexões sobre a Revolução em França, no qual, ainda no calor dos acontecimentos, defende ardorosamente o sistema político inglês - de reformas graduais, em contraposição ao extremismo e às exorbitâncias que ocorriam do outro lado do Canal da Mancha. Depois que Luiz XVI foi guilhotinado, em 1792, Burke voltaria ao tema, argumentando que os franceses teriam cometido um erro político gravíssimo: "Vocês ainda haverão de se arrepender amargamente deste ato. Ao invés de fazer como a Inglaterra, que em 1688 promoveu todas as reformas necessárias pacificamente e ainda com a chancela real, vocês, franceses, acabam de proclamar oficialmente a sua orfandade. E viverão eternamente carentes de um rei". Os fatos demonstraram que Burke tinha razão. Depois de Luiz XVI, os franceses viriam a proclamar diversos reis e imperadores, sendo o mais importante deles Napoleão Bonaparte.
Nos dias de hoje, quem passa por cima do viaduto d'Alma, em Paris, encontra uma espécie de santuário onde muitos acendem velas e pedem milagres. Nesse mesmo local, uns 20 metros abaixo, num acidente de automóvel, morreu Lady Di. Diana Frances Spencer não era uma santa (longe disso), mas foi uma princesa. Seria mais um indício de que Burke tinha razão?
Voltando às principais teses conservadoras, um conservador de verdade não tolera o relativismo moral. Ainda no século passado, terríveis consequências sofreram os povos onde ocorreu um colapso da ordem moral, onde os cidadãos transigiram quanto a isso. A moral há de ser uma só, seja ela fruto de revelação divina ou tenha sido forjada pela convenção humana. Ela é o resultado de um arranjo costumeiro, cuja origem data de tempos imemoriais. E é ela que nos preserva do abismo.
O pensamento conservador, nos dias atuais, vem ganhando relevo justamente porque os recursos naturais estão se tornando exíguos. Três décadas atrás ninguém demonstrava a menor preocupação com esse tema. Agora ele ocupa o proscênio das preocupações humanas. O polêmico aquecimento global e o esgotamento de matérias-primas importantes põem na ordem do dia a necessidade premente de preservar. E preservar é a principal bandeira do pensamento conservador - que não cuida somente de instituições sociais, mas abrange tudo o que diz respeito à humanidade.
Quem imaginava ser a ecologia uma bandeira de esquerda percebe agora que não é. Foi o comunismo, aliás, o regime político que mais sacrificou a natureza. Tudo em nome do progresso, conceito que vem sendo cada vez mais questionado pela opinião pública esclarecida. Os adeptos mais exaltados do pensamento conservador não acreditam na existência de progresso algum. Eles defendem, sim, mudanças graduais.
Os principais países desenvolvidos têm, todos eles, partidos conservadores que disputam e vencem eleições. Por que será que só aqui, no Brasil, os conservadores relutam em se admitir como tal?
Se o problema é a falta de alguém que puxe o cordão, tudo bem. Eu me declaro um conservador. E não tenho por que ter vergonha disso.

Comento:

Mellão Neto reconhece que, por algum motivo, os conservadores no Brasil estão acanhados, desaparecidos, escondidos. Os motivos disso são obscuros. Eu tenho uma tese, e pretendo escrever sobre ela mais adiante. Acredito que haja uma confusão entre conservadorismo e regime militar. Pretendo desenvolver a idéia de que o regime militar não se demonstrou baseado em um pilar conservador, e que a tradição conservadora é antagônica à visão de governo dos militares. Se vocês tiverem lido com atenção o artigo de Mellão Neto, já poderão identificar pistas do porquê. Acredito também que os inimigos do conservadorismo foram bem sucedidos em criar uma idéia equivocada sobre ele, associando-o a práticas que são totalmente alheias aos princípios legítimos de um conservador. Mas enfim, tratarei dessa questão em outro momento.

Neto indica também que o conservadorismo está ressurgindo no país. Isso é verdadeiro: esse blog contribui, ainda que com uma parcela ínfima, com esse ressurgimento. As idéias conservadoras têm aparecido de forma honesta e legítima nas redes sociais, em certas publicações editoriais brasileiras, e em alguns (poucos) articulistas das grande imprensa. Felizmente.

Com relação ao artigo, se a mim coubesse a oportunidade, eu mudaria o final do texto. Ali o autor se refere a ecologia como uma proposta conservadora, por ser receosa do ser humano e de seu potencial destrutivo. Eu nunca havia pensado nesse sentido. Como citei na minha primeira postagem sobre o estatismo, acredito que várias bandeiras ecológicas são lastreadas pela mentalidade socialista. Porém, independente disso, eu teria aproveitado a chance para, ao invés de falar da ecologia, descrever como o conservadorismo não é sinônimo de passividade ou manutenção do status quo. O conservador não está feliz com o atual estado das coisas. O conservador não está satisfeito com "o que está aí". O conservador é igualmente perturbado pela miséria do mundo - quiça ainda mais que seus opositores políticos, tendo em vista os tempos progressistas que vivemos - pois tanto sua leitura da sociedade quanto das soluções que estão sendo postas em prática são negativas. Ele também é um ativista, mas que procura resolver as questões propostas com soluções baseadas na experiência humana e em um entendimento receoso da natureza do homem.

Nem todos que colaboram com o EU SOU racional são conservadores. Alguns são mais que outros. Mas por que conservadorismo é um tópico em um blog de cosmovisão cristã? Porque os cristãos precisam pensar sobre o mundo. Os cristãos precisam saber como ler o que está acontecendo na economia, na política, no governo, e ter certeza que o estão fazendo em harmonia com os princípios bíblicos. E é possível que o conservadorismo constitua uma saída para essa encruzilhada cristã.

Esse blog é um espaço de abertura e discussão. Por isso, pretendemos aqui destrinchar o conservadorismo, analisá-lo, discuti-lo sempre que possível. Como já dissemos, você é nosso convidado a comentar nossas postagens e participar da discussão.


segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Obama, Estatismo e Cristianismo


“O que sempre fez do Estado um inferno na terra é precisamente que o Homem tentou fazer dele seu céu.”

Friedrich Hölderlin

Obama edita um discurso no Oval Office da Casa Branca
Nesta semana os Estados Unidos escolheram Barack Obama para ocupar a Casa Branca, como fizeram também em 2008. Obama foi reeleito presidente, e, ao término de seu novo mandato – ou seja, em 2016 – os Democratas terão ocupado o Executivo por um total de 20 anos desde 1973. Os Republicanos, em contrapartida, sentaram-se no Oval Office por um total de 24 anos desde esse mesmo ano. Ronald Reagan, que governou de 1981 a 1988, é o mais lendário republicano a ocupar o posto: em plena Guerra Fria, venceu as eleições por 525 votos no Colégio Eleitoral (Obama conseguiu 303 nas eleições do dia 5), e é rememorado até hoje como um dos grandes gênios conservadores do país.

Mas, afinal, quem é Barack Obama? De que forma ele pensa a função do governo? Como ele governa? E por que boa parte dos cristãos sérios nos Estados Unidos votou em favor Mitt Romney, ao invés de Obama?

Será que nossos irmãos da América do Norte estão apenas ávidos por continuar comendo hambúrgueres, dirigindo SUVs em filas de Drive-through, usando bonés Ford e ouvindo música country? Ou será que, por detrás desses estereótipos cômicos que fazemos do modo de vida americano, na prática eles sabem o que estão fazendo ao votar nos republicanos?

Um breve voo sobre a mentalidade obamista deixará as coisas mais claras.

Pretendo trabalhar essa questão em três textos. Neste, o primeiro, faço uma introdução sobre a mentalidade política de Obama e falo brevemente o que penso sobre ela.  No segundo texto, mostro as práticas de Obama – inclusive desta última campanha eleitoral – e algumas das falácias e desvirtuações que julgo estarem presentes nesse tipo de política. E, em um terceiro texto, tratarei de questões mais profundas, contrapondo o pensamento político de Obama com a tradição política cristã e com a Bíblia.

*

No pensamento de Obama, a sociedade é palco de uma luta entre ricos e pobres. Quanto mais pessoas forem deixadas em paz para progredirem da forma como bem entenderem, mais a exploração se acentuará, tornando os ricos apenas mais ricos, e os pobres, mais miseráveis. A razão disso, Obama e sua escola nos dizem, é que os seres humanos, que são naturalmente bons, estão vivendo sob um sistema denominado capitalismo, um sistema injusto que privilegia os ricos em detrimento dos pobres. Um sistema exploratório engendrado para aumentar a riqueza de quem já tem de sobra.

Como ninguém faz um diagnóstico cruel da sociedade sem indicar o remédio, Obama, o Partido Democrata e os "liberals" americanos (nos EUA, liberal é um termo aplicado a quem é de esquerda) trazem uma receita debaixo de suas mangas: o Estado . O papel do governo é “consertar” os erros do sistema, protegendo os oprimidos, cobrando impostos dos mais ricos, distribuindo a riqueza, e contraindo empréstimos até não poder mais. Esses recursos intermináveis – dinheiro tirado à força dos cidadãos – é aplicado em uma miríade de investimentos públicos sem fim: burocracia, ministérios, departamentos, secretarias, ONGs... Os funcionários públicos, nesse tipo de ideologia, são como arquitetos: fechados em escritórios até altas horas da madrugada, ocupam-se de projetar, manipular e articular os caminhos de uma “sociedade justa e igualitária”, por mais abstrato e metafórico que essa expressão possa ser.

Esses arquitetos do governo, mestres da engenharia social, são pessoas que conseguem se libertar da alienação capitalista, conseguem ver além dos meros interesses pessoais, e, por isso, merecem o poder para engendrar uma sociedade da forma como eles entendem que ela deva ser.  Por isso eu disse acima: esse tipo de pensamento supõe que as pessoas sejam essencialemente boas mas estejam corrompidas por um sistema ruim. Se o ser humano fosse mal por natureza, é evidente que o governo não seria uma solução, pois seria composto pelos mesmos interesses nefastos que se manifestam nas elites econômicas, financeiras, e etc. Mas não é assim que funciona nesta ideologia. Os arquitetos sociais do governo merecem o poder, por estarem movidos pelas intenções puras e por um entendimento lúcido e correto de como a sociedade funciona.

Esta ideologia política, que assim entende a natureza humana e a natureza do governo, tem vários nomes (aqui no Brasil dizemos “esquerda”), mas, para evitar desentendimentos com algumas definições da ciência política, eu a chamarei nessas linhas de estatismo. E Obama é um estatista de primeira ordem.

O estatismo é uma forma de pensamento político herdeira do socialismo. O auge do socialismo na política econômica foi nos anos 30 e 40, mas minguou-se depois da II Guerra Mundial, quando, depois de duas guerras mundiais, duas bombas atômicas e uma série de genocídios em massa praticados por Estados, a descrença na benevolência do ser humano atingira níveis altos demais para utopias governamentais. Porém, hoje em dia, o defunto socialismo pulverizou-se e ressurgiu-se em uma série de ideologias menores, sutilmente diferentes entre si, mas muito presentes no pensamento político atual: o ecologismo, o populismo nacionalista latino-americano, o eurasianismo russo, o progressismo big government europeu (social democracia). Todos estes carregam, como que em pesadas carroças, a mesma antiga mentalidade, a mesma forma de compreender o mundo: aquela em que boas pessoas estão sendo pervertidas por um sistema econômico ruim. Aquela onde deve-se fortalecer um órgão neutro, imparcial e poderoso que tenha poder para consertar a sociedade e torná-la justa e apropriada. O aumento do poder ao Estado – mesmo com todas as dívidas públicas e atrasos econômicos que isso acarreta – é a ordem do dia do estatismo.

A questão, é claro, não é diagnosticar que a sociedade humana possui uma série de problemas e injustiças. Ela é problemática ao extremo, e todos os cristãos sabem disso. Entretanto, o Cristianismo não coloca a raiz do mal no sistema econômico, por mais capitalista que ele seja. A Bíblia é precisa em apontar a origem de nossos problemas sociais no coração de todo ser humano decaído pelo pecado. Portanto, nenhum governo é capaz de mudar isso. Não há Estado redentor, não há pessoas desinteressadas ocupando o Palácio do Planalto, não há Casa Branca que faça milagres. Não há um grupo de pessoas que, incumbidas de poder onisciente e onipresente, são capazes de construir uma sociedade plenamente justa e gerar igualdade total.

Uma vez que o problema está no homem, e não no sistema, dar a certos indivíduos o tipo de poder requisitado pelo estatismo é um grande equívoco.

Adam Smith, pai do liberalismo econômico clássico e cristão reformado, descreveu, com uma ironia que lhe é típica, o perigo do estatismo:

O homem de estado que se esforce para dirigir indivíduos na forma como devem aplicar seus capitais, estaria não só carregando a si mesmo de uma atenção muito desnecessária, mas assumindo uma autoridade que não pode ser confiada com segurança a nenhum conselho ou senado que seja, e que não seria tão perigosa em nenhum outro lugar quanto nas mãos de um homem que teve a loucura e a presunção de se julgar apto a realizar essa tarefa.

Afinal, o homem, em sua natureza decaída, é imutável. Isso o torna eternamente incapaz de sentar na cadeira de praia de sua casa de campo e projetar uma sociedade plenamente justa, como se fosse o redentor da humanidade, um ente capaz de distribuir justiça. Aliás, torná-lo um “arquiteto” de humanidades trará apenas mais coerção e autoritarismo, pois é impossível construir um edifício sem forçar as vigas em seus lugares, sem controlar as fundações e as pilastras. É impossível fazer da sociedade um laboratório de experiências sociais sem manusear seus elementos intrínsecos como se fossem beckers, tubos e frascos de vidro.

Mas Obama não concorda conosco!

(continua...)

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Obama foi reeleito. E agora?

Na última terça-feira, 6 de novembro de 2012, Barack Obama foi reeleito presidente do Estados Unidos da América.

O que essa decisão significa para a Igreja Cristã e para o mundo? Quem é Obama?

Nosso blog procurará responder a essas perguntas em algumas das nossas próximas postagens.

Por enquanto, disponibilizados um vídeo editado a partir de uma pregação do Rev. John Piper, realizada em 2009, um ano após Obama ter sido eleito para a presidência pela primeira vez. O áudio está em inglês e as legendas em espanhol. Tentaremos providenciar legendas em português também.

Não deixem de conferir. John Piper dá uma resposta cristã à Obama sobre aborto:


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A Virtude da Vingança

"Remember, remember, the 5th of November,
Gunpowder, treason and plot.
I see no reason why gunpowder, treason
Should ever be forgot"

Essa é a cantilena que tomou a boca do povo no dia 5 de novembro de 1605, nas cercanias de Londres, Inglaterra. O propósito da cantiga era prestar homenagens de longa vida ao rei, que havia acabado de livrar-se de um assassinato imediato. Hoje, 5 de novembro de 2012, o facebook foi inundado por esses mesmos versos, mas carregando o sentido de luta contra o poder instituído. Como isso é possível?

Acredito que a maioria dos leitores já tenham assistido ao filme V de Vingança (V for Vendetta. Direção: James McTeigue. Reino Unido, Warner Bros. Picture, 2005). E se me engano quanto a isso, acredito que, daqueles que efetivamente o assistiram, a esmagadora maioria o considera um excelente filme. No mínimo estimulante. Mas será que a maioria dos leitores conhece o pano de fundo histórico que existe por trás do filme? Voltemos brevemente ao século XVII, para entendermos do que realmente ele trata. 

Chega ao fim um reinado de 45 anos. Elizabeth I, a Rainha Virgem, expira no dia 24 de março de 1603. Poupemo-nos da alegação de virgindade. Fato é que ela não foi casada, nem deixou herdeiros. A coroa, pela lógica hereditária, é pleiteada pelos parentes mais próximos. Quem triunfa na disputa é Jaime VI, o sábio imbecil rei da Escócia. Ele agora seria, cumulativamente, Jaime I da Inglaterra. Como conseguira isso? Flertando com o apoio político de católicos ingleses. Sua esposa, Anne da Dinamarca, uma católica, envia uma petição ao papa em apoio ao entronamento de Jaime, com a promessa de resgatar a Inglaterra da  trevas protestantes de volta para a luz resplandecente do catolicismo. 

Jaime toma posse. Como retribui aos católicos? Os detalhes são tantos que me forçam a resumir: com uma considerável perseguição religiosa. Intolerância, sem dúvida. A resposta católica? O papa convoca seus debatedores profissionais, os jesuítas, para escreverem tratados legitimando o que foi chamado de tiranicídio, ou seja, o direito legítimo de assassinar um tirano que assume o poder. Ao mesmo tempo, um grupo de católicos ingleses inaugura a Conspiração da Pólvora (Gunpowder Plot), cujo modesto objetivo era explodir o Parlamento inglês na primeira sessão de 1605, a partir de uma sala repleta de pólvora logo abaixo do plenário. O plano foi descoberto de última hora. Conspiradores presos e enforcados. Alguns padres tiveram o mesmo destino, com destaque todo especial para os jesuítas. Mas a figura central, nem tão central na época, foi Guy Fawkes, conhecido desde então como "O Grande Conspirador". Morto, ele também. 

Dito isto, podemos começar a pensar. Quem é V

Ele não é Guy Fawkes, como já salientou o diretor do filme. Ele usa uma máscara do Guy Fawkes. Teria uma admiração pelo conspirador, notadamente enquanto símbolo da resistência de uma minoria oprimida. Há indícios no filme de que ele seja católico e esteja tentando resgatar aquele frustrado plano, de 1605, nos idos de 2030. Daí a Vingança. Historicamente, a vingança seria contra a hipocrisia de Jaime I e contra a perseguição irrestrita aos católicos, que evidentemente aumentou após o fracasso do plano. 

Mas o que realmente faz pensar é o porquê do fascínio que o filme exerce sobre as pessoas. Ele é recebido como um retrato idealizado do poder do povo. São nossos governantes que devem nos temer, não o inverso. Um quê de Maquiavel às avessas. O filme é saudado como a única solução possível para o abuso de poder de autoridades auto interessadas, isto é, uma tirania. Em miúdos, é um guardião da democracia

Democracia. Palavra usada ao longo de todo o século XX como legitimadora de absurdos. Não estou falando das guerras encetadas pelos EUA. A esquerda também se pretende democrata. Democrata ao extremo, aliás, buscando, no mais das vezes, a anarquia. O filme trata da busca pela anarquia ante um regime despótico. O diretor nos assegurou essa intenção. A questão que se coloca: o que é, no próprio filme, legitimado em nome da democracia? O que é feito e bem recebido em nome de uma nova ordem social?

A resposta: morte. As mortes que V inflige aos oficiais do governo são mortes aplaudidas. A tortura de Evey é recebida como uma libertação do medo. Um mundo onde não há respeito à vida é combatido com um idêntico desrespeito aos homens. A atitude revolucionária de passar por cima de vidas em nome de uma reforma política é aceita como um refrigério. Como disse certa vez um 'companheiro', professor universitário, "a história não avança sem atos de violência"

Isso é o enterro do indivíduo. É a morte dos sentimentos. O sepultamento da humanidade. Perde-se totalmente o valor do respeito à vida. A vida é secundária diante da guerra política. O que importa não é que indivíduos - ignóbeis e tirânicos, é verdade - estejam sendo mortos. O que importa é que a revolução seja assegurada, custe quantas vidas custar. Esse é o pensamento que levou, no mínimo, 20 milhões às covas coletivas do stalinismo. A revolução precisa ser garantida. As vidas são um empecilho. Palmas. 

O que poucos atentam é que o filme não é D, de Democracia. É V, de Vingança! O que se promove enquanto virtude, o que se coloca como desiderato, como alvo primeiro, é a Vingança, não a democracia. O que move o protagonista - e todos aqueles que o aplaudem - é o mais vil desejo de vingança. E isso tem encantado a plateia. O sangue, o conflito, a morte. Tudo. Tudo em nome de um novo governo. 

É essa a mensagem que queremos deixar ao mundo? Que a vida e a integridade física são marginais em relação à estrutura política? Que a disputa por poder deve ser feita por meio das armas e do assassinato? Que é legítimo excluir a existência alheia, por pior que ela seja, em nome de uma nova ordem social? 

Não é esse o mundo em que acredito. Não aceito o convite à desvalorização da vida e ao enaltecimento da política. Abomino que, em nome de uma tolerância, seja praticada a intolerância em relação à vida humana. O homem, imagem e semelhança de Deus, não pode ter seu valor nulificado. A morte de um homem é a morte de um ser criado à imagem e semelhança de Deus. Há, portanto, um quê de divinicídio no assassinato.

Não aceito a promoção da vingança como virtude capital da humanidade. Essa virtude eu dispenso de bom grado. Jamais esquecerei o 5 de novembro. Como um dia em que a intolerância e o desrespeito à vida prevaleceu - de ambas as partes, infelizmente.

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Deixo disponível aqui, para quem tiver interesse, um texto acadêmico que publiquei acerca das consequências da Conspiração de Pólvora de 1605 para o pensamento político moderno. Um texto modesto e de leitura não muito palatável. A partir da página 73. 

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Abertura

Saudações!


Estamos debutando o EUSOU racional, um blog de debate e reflexão, em que pretendemos discutir questões que talvez sejam do seu interesse. Pressupomos que você raciocina sobre o universo ao seu redor, e que você o faz de forma crítica, interessado nas questões mais fundamentais da vivência humana individual e em sociedade. E é isso que você verá nas próximas postagens deste blog, de forma inteligente e provocativa.


Há algo de fundamental em todo ser humano, um pano de fundo por meio do qual ele interpreta toda a realidade ao seu redor. Esse “algo” é profundo, precede até mesmo as ideias: é a motivação mais básica, mais original, mais profunda, que orienta e dirige as concepções de uma pessoa. A isso chamamos “cosmovisão”. Se fizéssemos uma analogia entre o indivíduo e uma árvore, poderíamos compreender a copa da árvore, sua infinitude de folhas e frutos, como as ideias, a imaginação, as opiniões da pessoa. A cosmovisão, em nossa analogia, faria o papel do tronco da árvore: o veículo que orienta suas concepções e compreensões. Sua visão de mundo. 

A isso os falantes da língua inglesa chamam worldview. Os germânicos, primeiros desenvolvedores dessa ideia, chamam-na weltanschauung. Esse blog é sobre isso: visão de mundo. A partir da elaboração de uma visão de mundo bíblica, cristã, partiremos em interpretações sobre política, arte, ciência, filosofia, economia.

Sua participação é fundamental para nós: sinta-se à vontade e navegue pelo site. Recomendamos que você também dê uma olhada na sessão quem somos, onde encontrará nossa proposta e um pouco de quem está por trás dessas linhas.


Até a próxima!