sábado, 18 de maio de 2013

Ego, o trabalho do crítico e do artista

Apesar de nem todos se lembrarem do seu nome no filme, todos lembram do papel de Anton Ego em Ratatouille: ele é o implacável crítico gastronômico enfrentado pelos heróis cozinheiros.

Conhecemos um pouco mais da sua trajetória apenas no final do filme, portanto, posso estragar o final da película para alguém que ainda não tenha assistido. Quando criança, Ego experimentava o amor da mãe através dos pratos que ela lhe oferecia, ele encontrava um prazer simples mas verdadeiro nessas refeições sem grandes sofisticações que eram servidas pela família. De alguma forma, ele cresce para se tornar um crítico exigente, quase impossível de satisfazer. O filme não fala nada a respeito do seu processo de tranformação, primeiro, porque eles sabiamente decidiram que isso poderia ser muito chato e, depois, porque todo mundo conhece um pouco como essas coisas se dão. Mesmo com todas essas advertências em contrário, arrisco-me com uma descrição: tudo começa com o amor à boa comida, que o leva ao interesse em falar sobre ela, sua paixão pelo assunto faz aflorar uma habilidade com o texto, essa habilidade lhe rende elogios que, quando repetidos, levam-no gradativamente a acreditar não somente que ele é um bom crítico mas um privilegiado, membro de um grupo muito restrito de connoisseurs.

Tentando continuar a desvendá-lo, percebemos que o nome da personagem é certamente outra pista sobre a natureza da sua personalidade. A forma como se relaciona com os protagonistas parece ser seu modo padrão de comportamento, ou seja, aos outros demonstra inimizade e superioridade, afeição é algo reservado apenas a si mesmo e ao seu renome. Ele mesmo reconhece isso: "de certa forma, o trabalho de um crítico é fácil. Nos arriscamos pouco e temos prazer em avaliar com superioridade os que nos submetem seu trabalho e reputação. Ganhamos fama com críticas negativas que são divertidas de escrever e de ler."

Amar somente a si mesmo é um comportamento que Agostinho chama de orgulho, um vício muito comum e, em sua opinião, o pior de todos. Orgulho é esse amor próprio que está sempre em competição com todos os outros egos concorrentes e cujo prêmio, no final, é o poder. George Orwell, num registro muito mais sombrio, coloca uma das melhores descrições desse mal na boca de O'Brien, personagem de 1984.
‘Como um homem demonstra seu poder sobre outro, Winston?’
Winston pensou. ‘Fazendo com que ele sofra’ ele disse.
‘Exatamente. Fazendo com que ele sofra. (...) O poder está em inflingir dor e humilhação.
O mal de Anton Ego não é como o de O'Brien em escala mas certamente o é em natureza. Todos os elementos descritos acima fazem parte do comportamento do crítico gastronômico de Ratatouille. Primeiramente, há a ridicularização das vítimas de suas críticas; na própria forma como Ego é desenhado, podemos enxergar essa característica: sua fisionomia sempre mantém uma aparência de desdém e superioridade, não importa se está zangado ou impaciente. Outro ponto importante é o desprezo pelo lema de Gusteau, "qualquer um pode cozinhar", o que não é uma surpresa já que ele fere o princípio fundamental do orgulho: para que haja privilégio, devem haver privados; como alguém pode sentir-se acima dos outros sem que ele acredite que possui algo que foi negado aos demais? Finalmente, como já mencionamos, há a inimizade constante em relação a qualquer um que não seja ele próprio, como o vício impulsiona o orgulhoso a tentar colocar-se acima de todos com quem se relaciona, não resta outro relacionamento possível que não a hostilidade. Ego é, portanto, um exemplo perfeito de homem orgulhoso.

Mas uma mudança radical acontece quando ele experimenta a ratatouille servida por Remy. Os males causados por seu ego se revertem e Ego recupera o prazer simples que ele experimentava quando criança – o prato, inclusive, é o mesmo. O orgulho, vício fundamental do cristianismo, é combatido pelo que cremos ser o fim supremo do homem: a alegria; o catecismo escocês diz que o principal fim do homem é ‘glorificar e alegrar-se em Deus para sempre’. C. S. Lewis descreve episódios parecidos em sua autobiografia e também chama a sensação de "Alegria". Ela é definida por Lewis como uma pontada de beleza, algo tão sublime que nos faz querer alcançar uma coisa ainda mais alta, a experiência é como um vislumbre do divino que deixa aquele que a experimentou sedento por mais. Ele se sente assim quando lê pela primeira vez Phantastes de George MacDonald. Perceba a semelhança com a experiência transformadora de Ego no trecho a seguir, em que Lewis desrcreve a ocasião da leitura:

É como se eu tivesse sido carregado através da fronteira enquanto dormia ou como se eu tivesse morrido no velho país e nunca pudesse me lembrar como eu cheguei vivo ao novo (...) Mesmo quando nuvens ou árvores reais haviam sido o material da visão [de Alegria], elas haviam tido esse papel apenas por lembrar-me de outro mundo; e eu não tinha gostado do retorno ao nosso. Mas dessa vez eu havia visto a sombra fulgurante saindo do livro para o mundo real e ficando ali, transformando todas as coisas comuns e, ainda assim, permanecendo a mesma.
Mas não é apenas o refinado crítico que tem seu ego confrontado no filme, seu vício não atinge apenas os abastados, os parentes de Remy sofrem do mesmo problema na extremidade oposta. Para eles, a comida não é lugar para arte ou beleza e o gosto de Remy coloca a situação da família em jogo, todos olham com desconfiança para o hobby e para as companhias do pequeno chef. Enquanto a defesa da simplicidade é um movimento arriscado para Ego, a aceitação da gastronomia sofisticada de Remy é uma ameaça à reputação de seu pai e sua família. O crítico vive focado no renome, brincando com seu poder de colocar aqueles que se submetem à sua avaliação no grupo dos aceitos ou dos rejeitados mas a família de roedores também teme a rejeição que pode advir do hobby de Remy, a ânsia de estar no círculo dos aceitos – e, melhor ainda, no dos privilegiados, como Ego – é uma falha que não está ausente na família. Mais ainda, a incompreensão entre os dois grupos é mútua mesmo que os vícios de ambos os lados sejam parecidos.

Na ratatouille de Remy, porém, ambos os problemas se resolvem. O filme tem uma daquelas bonitas conclusões da Pixar em que a família de Remy, após aceitar seu jeito diferente de tratar a comida, colhe os frutos dessa aceitação, enquanto Anton, acaba por descobrir a verdadeira alegria de viver apenas quando é forçado a abandonar a crítica, a reputação e principalmente o ego; ele investe num pequeno bistrô, abraçando a sua verdadeira paixão: a arte da comida.

Encerro com sua última crítica no filme, muito bonita:

sábado, 11 de maio de 2013

Pensando sobre a Revolução Americana


Recentemente o Pedro me questionou sobre a Revolução Americana, o conflito que se iniciou em 1776 e fez surgir os Estados Unidos da América.

Pedro me perguntou a pergunta óbvia: Isso que os americanos fizeram em 1776 foi uma Revolução realmente?  Como pode não ter sido, se esses revolucionários americanos criaram algo radicalmente novo – a primeira República moderna – e foram influenciados pelos iluministas franceses?

É uma ótima pergunta. Chamar o processo que fez surgir os Estados Unidos de “revolução” significa ligá-lo automaticamente aos dois maiores exemplos de revolução da História: a Revolução Francesa, de 1789, e a Revolução Russa, de 1917. Essas duas revoluções foram profundamente anti-cristãs, tanto na prática quanto na teoria.

A resposta dessa questão é muito importante para o cristão pensante. O cristianismo precisa saber o que pensar sobre revoluções políticas. Afinal, se os americanos fizeram uma revolução, no mesmo sentido dessas outras que citei, o pensamento político cristão deve no mínimo vê-los de maneira cética. E, como sabemos, os EUA são um grande centro do protestantismo mundial, e os protestantes americanos veem positivamente os ideais de seu próprio país.

Propus-me, então, a tentar responder a pergunta do Pedro por meio deste blog. Eu estou persuadido de que a Revolução America não foi uma revolução no sentido da comum acepção do termo. Esse nome "Revolução Americana" é uma figura retórica apenas. Esse é o ponto que irei defender.

Disclaimer: As ideias apresentadas aqui são reflexões apenas, e não conclusivas.  Se você gosta do assunto, por favor, ponha na mesa a discussão. 

*


1776. Durante todo o processo de guerra contra a Inglaterra, e estabelecimento da nascente República, os revolucionários americanos refletiram continuamente sobre o que estavam protagonizando, especialmente em The Federalist Papers, nos próprios debates para formulação da constituição, e em um sem número de panfletos que circularam pelas colônias inglesas na América às vésperas da Revolução. Em The Federalist escrevem Alexander Hamilton, John Jay e Jay Adams, defendendo a necessidade do estabelecimento de um governo central para governar as antigas colônias. Nos debates da constituição, vê-se a figura proeminente de Thomas Jefferson, o pai dos Estados Unidos, o pai da República, um homem cujo pensamento se tornou hegemônico nos anos seguintes. E nos panfletos que antecederam ao conflito armado, pastores, autores menores e entusiastas convocaram os colonos à luta e viveram a exaltação contagiante da luta contra o poder e contra a opressão.

Evidentemente, um bom caminho para analisar o que esses homens estavam fazendo é saber o que pensavam e o que achavam do estavam fazendo. 

Era consenso no pensamento político de matriz britânica do século XVIII – graças principalmente a John Locke e os Commonwealth Man, gente como John Milton, e o Earl de Shaftsbury  – a ideia de que, em algum momento longínquo da história, quando os homens viviam num estado de natureza, livre e sem governo, ao perceberem as paixões e a violência que os homens cometem entre si, optaram por sentar e fazer um acordo: instituir uma autoridade que garantiria a preservação do direito de cada um à liberdade sobre si mesmo e sobre seus bens. Assim, a função do governo civil, no dizer dessa teoria política, é apenas um comprometimento com cada indivíduo em particular, por meio do qual o indivíduo abre mão de exercer ele mesmo a justiça para ver realizada numa autoridade central a garantia da preservação dos direitos de liberdade e da propriedade. Nesse sentido, a sociedade não é a realização mística do corpo divino, ou uma união sacra e misteriosa instituída por Deus, mas somente um acordo, feito com o consentimento de todos os homens, para que haja uma única autoridade responsável por garantir direitos e proteger os indivíduos. Esse tipo de pensamento político era dominante na Inglaterra, e estava estipulado na famosa Bill of Rights de 1689. Esse tipo de teoria política estava em pleno vigor na Inglaterra e em suas possessões coloniais também.

É claro que a constituição britânica não criava esses direitos, ela os reconhecia. Para os americanos, para os ingleses – e para qualquer um que cresse nos mesmos princípios políticos – eles eram universais, válidos para todo homem e em qualquer lugar do planeta. A Bill of Rights apenas garantia a verdade de que o governo inglês estava comprometido com eles, e que isso o tornava o próprio governo legítimo, senão deveria ser este mesmo governo derrubado.

Os colonos americanos foram gestados nesse tipo de pensamento. Não só no liberalismo político em geral, mas em particular afinidade com os Commonwealth Men. Estes homens, verdadeiros reformistas, defendiam a liberdade de culto dos protestantes que não fossem anglicanos, sufrágio masculino universal, e até mesmo a instituição de uma República (o que, em si, não é nada de assustador para um povo que vivera o fenômeno Oliver Cromwell).

Portanto, os colonos viviam há tempos embebidos nessa teoria política e sob os privilégios da própria constituição britânica, legislada pela Bill of Rights. Viam-se como parte da Commonwealth assim como todos os outros que viviam além do oceano, embora, porém, para esses colonos americanos a ideia do governo como garantidor de direitos era mais significativa ainda, pois muitos haviam fugido para a América procurando a liberdade religiosa que lhes foi podada na própria Inglaterra. Ou seja: num colono americano a ideia de liberdade era mais vívida, real e palpável do que para um inglês, um “reinol” que se ocupava também das questões da monarquia, do parlamento, da experiência adquirida por séculos de nação britânica, ou da tradição como um todo.

Aqui entra uma questão fundamental para começarmos a julgar o que foi a Revolução Americana: a idéia de tradição. Pois toda Revolução se ergue na contramão da tradição, rasga-a em farrapos, tem horror a esse corpo de experiência coletiva acumulado ao longo do tempo, lenta e gradualmente, sem o auxílio de nenhum intelectual mágico. Revoluções trituram tradições.

Mas na América não havia tradição. Nunca houve batalha de Hastings na América. Nem João sem Terra. Nem as cruzadas. A Igreja Anglicana não dava suas caras por lá, nem o parlamento. Toda essa história jazia há léguas e léguas de oceano, muitos cresciam ouvindo-a sem nunca terem sequer visto a Europa. O que havia na América era a colônia, seu único diferencial era ser regida pelo próprio modo político britânico.

“Ora”, diz-me o Pedro, “e os 200 anos de história colonial? Isso não tem valor? Ser colônia não é também uma tradição?”. Decidir se há tradição ou não é muito importante quando se pensa em Revolução.

Eu diria que a tradição colonial é algo frágil. Enquanto metrópole, gestar colonos como os colonos americanos é algo perigoso. Nesse sentido, é compreensível o medo que os portugueses tinham das ideias iluministas chegarem à colônia brasileira. A parca civilização colonial não significa muita coisa para um pensador liberal, um commonwealth man, uma espécie de bon vivant das ideias políticas, que respira a noção de direitos, de liberdade, de república. Ele vibra com ela, é um humanista cívico, um sujeito cheio de amor pela virtude, um namorador da boa política, da civilização humana, e que tem medo da natureza corrompida do poder. Após ficarem independentes, por exemplo, os americanos vão logo perceber que não tinham nada e precisavam criar tudo. Todo o século XIX e a conquista do Oeste será o século de “criação” dos Estados Unidos da América. A colônia americana era pífia sobre qualquer exame civilizacional sério. Isso é bem diferente de tradição. Burke, o gran maestre conservador, quando invoca a tradição inglesa, fala justamente dessas coisas que falei: batalha de Hastings, conquista Normanda, João sem Terra, Magna Carta. Isso sim é tradição. Ele tão bem sabia disso que, conservador que era, apoiou a independência das colônias, pois cria que elas deveriam desenvolver sua própria história. Tradição é uma conquista civilizacional, algo que precisa ser cuidado e preservado para não se perder (dirá Burke). Uns povoados costeiros irrelevantes não são a mesma coisa que tradição.

Talvez até seja, para quem está meio acomodado na cadeira. Mas quando o rei inglês fica “abusado”, as coisas vão ficando sérias. Por isso eu disse: é algo frágil. Ninguém irá evocar a tradição colonial para evitar entrar em conflito armado contra a Inglaterra. Muito rapidamente os americanos vão perceber que, se eles não são ingleses, não são nada ainda.

Primeira bandeira americana: as treze estrelas
representam as treze colônias
Pois eis que as pretensões imperiais inglesas e o elevado custo com guerras recaem enormemente sobre as colônias americanas em forma de impostos e fiscalizações. O rei inglês começa “a abusar” da colônia (não dá para contar toda a história aqui). Em quase todo lugar essa história é contada como o estopim da declaração de independência das colônias americanas (fala-se da festa do chá de Boston, e tudo o mais). Isso é verdadeiro. O primeiro Congresso da Filadélfia, por exemplo, não é separatista. Os colonos vão à Inglaterra reivindicar direitos, e são rechaçados. Quando o rei aumenta sua exploração da colônia, ele entra em conflito direto tanto com a ideia de commonwealth já gestada e desenvolvida na América, quanto com a própria ideia de liberdade que seu país outrora inseriu nos viajantes que se instalaram na América. Ele simplesmente mostrou aos americanos que a América era realmente um lugar diferente, e não era Inglaterra. Os americanos vão construindo seu raciocínio a partir disso. A Revolução é gestada durante o conflito, ela não é produto de nenhum grande teórico que projetou tudo de cima de sua escrivaninha, ou que elaborou uma Enciclopédia explicando o funcionamento da humanidade a partir da ciência. A idéia de América vai surgindo conforme o confronto vai se delineando, e a luta por um ideal de liberdade em que não há poder central opressor vai contagiando as mentes americanas. Não houve nenhum teórico da Revolução.  Aliás, como eu mostrarei mais para frente, os homens que citei, Jefferson, os irmãos Adams, Hamilton, Jay, Washington, não eram intelectuais no sentido que entendemos hoje. Eram homens de negócios, políticos, administradores, juristas, governantes, pessoas com um senso muito prático da vida real, e não cientistas da agência humana.

Desses desentendimentos e desses conflitos, portanto, começa a surgir na colônia uma espécie de reavivamento político pautado pelo medo da tirania e da opressão. Isso é muito significativo. A guerra contra a Inglaterra será decidida, no limite, por pequenas milícias formadas por cidadãos comuns, ordinários. Isso está no germe da cultura americana até hoje: as pequenas associações, as comunidades locais, o direito de portar armas, e uma desconfiança absurda com qualquer governo ou poder instituído. A coisa que um americano médio caipira mais odeia é um homem do governo batendo a sua porta. Isso está no espírito popular da guerra de independência. O espírito reformista que agita os colonos é extremamente idealista: libertar o indivíduo da opressão política. Gestados na tradição dos direitos de liberdade, com um nível de educação acima da média (panfletos, panfletos, e mais panfletos, jornais, artigos, em cidades e vilas) os colonos se veem como oprimidos, e com sua liberdade em risco por causa do rei que não era honesto e coerente com seus princípios. A nação inglesa traíra a colônia, dizem os americanos. Os colonos viam um risco real de perder a liberdade. Bernard Bailyn fala de “medos reais, ansiedades reais”, a crença em uma conspiração contra a liberdade, oriunda da corrupção do espírito humano pela detenção de poder, e que ocorria no mundo inteiro, sendo o conflito na América um pequeno capítulo desse problema. Há uma “liberdade contagiante” (também diz Bailyn) que agita a colônia.

Não faltam estudos sobre a maneira como essas idéias se popularizam de maneira singular nas colônias (aliás, não faltam estudos sobre nada da Revolução Americana). Eles giram em torno dos hábitos de leitura mesmo, da divulgação do pensamento americano pela panfletagem, pelos discursos públicos, e coisas assim. Há uma absorção popular do medo da opressão e da tirania.

Às armas, guiados pelo Exército Continental de George Washington, os colonos sofrem perdas enormes inicialmente, mas articulam-se bem com o território, convocam milícias populares e conquistam inclusive ajuda militar francesa. A guerra é vencida na captura de um exército inglês em Yorktown, em 1781, e os derrotados ingleses reconhecem a separação americana em 1783.

Batalha de Camden, 1780.
E o que acontece a partir daí? Como surgem os Estados Unidos? (Continua...)

domingo, 5 de maio de 2013

Contra uma Visão Deflacionária do Homem: A Questão da Maioridade Penal


Redução da maioridade penal. Eis o problema. Ou seria a solução?

O debate vem se arrastando ao limite da exaustão e do insupotável. O facebook já mal tolera a peleja de fotos, discursos, discussões e informações a respeito do tópico. De um lado, pesa a indignação contra os crimes nauseantes que testemunhamos com infeliz regularidade. De outro, o raivoso ceticismo quanto à eficácia do recurso jurídico.

O debate irrompeu novamente, e com força, após o indiferente latrocínio de Victor Hugo Deppman e o repulsivo e ignóbil assassinato da dentista Cinthya de Souza. Os fatos são conhecidos o suficiente para não termos que manchar com eles as páginas deste blog.

O que tenho visto, contudo, é uma avalanche de argumentos que mal arranham a epiderme do problema. Os defensores da redução apontam os crimes pavorosos e o temor paranoico, ainda que justificado, de sua reincidência aleatória. Os opositores alegam que as transgressões são consequência ululante do descaso governamental com a educação e com o sistema carcerário.

A fim de ilustrar, visto a camisa dos indignados. É um absurdo! Um descaso com a vida! É evidente que com 16 anos já se está bem crescidinho para saber o que faz, e por isso deve pagar! Deve apodrecer na cadeia um marginal desses, que é pra aprender!

Banco agora a defensoria. De nada adianta mandar um moleque de dezesseis anos para a cadeia. Olhe a condição de nosso sistema carcerário! É óbvio que aquilo é uma fábrica de criminosos! Só vai piorar a situação! O que precisa ser feito é investir na educação de qualidade e na dignidade do professor. É muito fácil para o estado mandar pra cadeia quem comete crimes, mas ele não dá nenhuma chance pra esses criminosos terem uma vida honrada!

Só que não. A questão me parece ser bem mais complexa.

*

É preciso analisar com acuidade os princípios abstrusos por detrás da ardorosa rejeição à redução da maioridade penal. Para tanto, é imperativo localizar a rede causal dos sobreditos crimes. Em outras palavras, devemos responder à pergunta: por que esses crimes foram cometidos?

Os contraditores da redução informam que as causas dos delitos se reduzem, basicamente, ao pauperismo da educação brasileira e à horripilante condição do sistema de detenção do país. Sanados esses problemas com louvor, as atrocidades do abril nefasto não se repetiriam na sociedade. Uma educação aguçada, instrutiva e de qualidade, aliada a um aparato de correção dos infratores revestido de honradez e humanidade, tornaria vã a propositura de se reduzir a maioridade penal. Adolescentes bem educados e malfeitores reeducados certamente não hão de cometer crimes dessa estirpe. Se eles hoje ocorrem, é por negligência governamental. A solução final, portanto? Um aprimoramento, por parte do estado, no setor mais básico da experiência civil: a educação, o que abarca também a reeducação.

Aprofundemos agora o problema. Que tipo de homem e de humanidade está pressuposto nesses argumentos? Um homem fundamentalmente plástico, capaz de ser moldado pelas circunstâncias onde ambula. Um homem sujeito e submisso aos ditames culturais em que vagueia. Mais ainda: um homem em boa medida determinado pelo ambiente em que vive. Assim, o garoto de periferia que se entrega às investidas de seu entorno, aos vetores que o tragam para a execução da criminalidade, aquele que se deixa levar pelas tristes ocasiões de sua realidade, que cede aos desígnios de seu meio ambiente, este garoto é retratado como uma vítima notória de uma sociedade que é uma vergonha para si mesma. Afinal, o que se espera de uma gestação cujo útero é a criminalidade, senão o parto de um criminoso? A sociedade é que merece as vaias por dar à luz pessoas de tal feição. Como um filho, imagem e semelhança de seus pais, assim o transgressor, espelho de uma sociedade saturnina. 

O ser humano, portanto, é um produto. Ele é o que a sociedade faz dele. Se temos um criminoso diante de nós, a culpa deve ser imputada à sociedade. E é dela, naturalmente, que se deve exigir as ações transformadoras. É o estado que deve garantir os bons estudos das crianças e a recuperação dos bandidos. Enfatizo a cosmovisão por detrás dessas proposições: o homem é o que dele se faz, para o bem ou para o mal. A pergunta que fica a ser respondida: o homem não é, assim, responsável por suas ações?

Aqui começa a sutileza. A posição esmiuçada até aqui transfere a responsabilidade dos atos infratores: do indivíduo executor para o estado gestor. Se o homem se abrevia a um produto social, seus atos se resumem a parcos reflexos de sua educação e seu espaço de experiência. O problema estaria na educação – ou na reeducação – e o responsável por ela deve ser o governo. Essa lógica nos intima a crer, portanto, que a culpa é do governo, incapaz de cumprir as demandas sociais com lisura. Dessa sorte, quando um membro do governo propõe que a maioridade penal deve ser reduzida, ele aponta os falsos culpados. Deveria ele mesmo assumir a falta dos crimes devido a sua incompetência administrativa ou embuste político. Feito isso, deveria tratar de exercer com eficácia sua função: corrigir a sociedade para evitar o recurso dos delitos!

É um problema, em seu ótimo, ontológico. Ou, no mínimo, antropológico. Pressupõe-se que o homem será o que dele se fizer, e que nele não há maldade – ou, quiçá, nem mesmo bondade – autônoma. Se ele produz o mal é porque a sociedade o induziu a tanto, logo, ele não deve ser responsabilizado. O ônus recai, evidentemente, sobre o estado.

*

Não acredito nessa visão simplista, mecanicista, determinista e materialista de homem. Ela é de uma pobreza tal que eu me sinto tentado a convidar seus defensores ao suicídio, depressiva que se afigura essa perspectiva antropológica. (Não me espanta, por sinal, que metade – ou mais! – da Faculdade de Filosofia da USP faça uso de antidepressivos chumbantes. Eu também os usaria se considerasse o homem com essa carência e indigência de espírito.)

É evidente que os contraditores da rejeição não assumem que enxergam o homem dessa forma. Alguns porque são, eles mesmos, inconscientes do fato. Mas todos eles, diante de seus próprios pressupostos, preferem negá-los do que revê-los. Querem manter seus argumentos negando suas premissas. Faz parte da blindagem irracional que seu ódio contra “o sistema” – o culpado de tudo! tudo mesmo! – requer. O grosso dos expoentes dessa visão se assumem enquanto esquerdistas. Por esquerdismo quero dizer, neste caso específico, um defensor de qualquer dos muitos matizes do marxismo. A verdade inconveniente é que o próprio marxismo requer um determinismo social. Um determinismo intransponível, por sinal, devido ao poder das ideologias. Da mesma forma, esses militantes são, em sua esmagadora maioria, evolucionistas, e mal se conscientizam do determinismo necessário que a teoria da evolução implica.


Digam o que quiserem, reconheçam se forem honestos: são deterministas. A causa da maldade está na sociedade, o culpado é o governo, e o homem não pode ser responsabilizado por seus crimes.

Mas há uma exceção. Nem todos os homens podem ser escusados de suas infrações. Existe um tipo bem específico de homem que deve arcar com todas as consequências de seus atos: o cruel e desumano homem burguês. Falando em termos mais latos, o rico, o que teve uma boa educação, o que jamais passou necessidades, o que nunca sofreu as agruras da periferia. Afinal, que motivo teria ele para cometer um assassinato? Ele não sabe o que é sofrer! Fosse ele um pobre garoto de rua, que comeu o pão que o Diabo (??) amassou, então ele estaria justificado. “Culpa do governo, que não educa e exige educação!” Mas um bon vivant? Este optou pelo crime, e é responsável por ele. Não o estado, mas ele! O indivíduo! O resultado é extremamente curioso: o indivíduo provido de bons recursos, boa educação e boa família, este deve ser responsabilizado por seus atos. Seu antípoda, o pobre, de educação lastimável e família invertebrada, este não pode ser responsabilizado por seus atos. Ele tem uma “licença social” para ser como é. Não passa de uma vítima e um produto de um sistema que o estado conduz e alimenta. Rompe-se aqui sua própria lógica determinista. Só interessa bradar o determinismo quando se faz oposição “ao sistema”, quando se pode culpá-lo pelas decisões humanas. 

Sim, eu acredito nas decisões humanas. Não penso que um garoto de periferia que se mantém íntegro havendo nascido em um mundo de promiscuidade moral, que o adolescente que resiste às investidas de seu entorno que o arrastam para os crimes hediondos, seja um milagre. Isso seria santificar a simples virtude como ato hercúleo e legitimar a torpe maldade como inércia. Não. Ele não é um milagre, é o produto de suas escolhas.


*

Aprecio o ser humano o suficiente para entendê-lo como um agente. Não contemplo o homem como o produto de uma rede causal socialmente determinada, e por isso não me inclino a culpar o governo por suas ações. Dito de forma parmenidiana: o responsável pelo crime é o responsável pelo crime. A maldade que deflagra a infração é fruto da escolha de um homem, um indivíduo em sua inteireza e profundidade civil, psicológica, ontológica e espiritual. Qualquer posição que rejeite essa afirmação acarreta em uma visão deflacionária de homem que me parece altamente casmurra e deplorável. 

É evidente que existem problemas no sistema educacional e carcerário do país. É inquestionável que esses rombos carecem de urgente solução. Concordo que o ambiente em que uma criança se desenvolve é elemento fundacional na gestação de seu caráter. É justamente por isso que defendo os valores familiares tradicionais. Mas estas são questões independentes. O que é intragável, sobremaneira, é a desoneração da responsabilidade criminal dos homens, precisamente pelo fato de que são o que são: homens