sábado, 22 de junho de 2013

A pátria que te pariu

O Brasil não despertou, o Brasil deu à luz. 

Uma nova geração de brasileirinhos rebentou neste mês. Mas são filhos alheios de um país que serviu, por circunstâncias infelizes, como barriga de aluguel para pais infaustos. São filhos, na verdade, de um matrimônio genético nefando: por parte de pai, do marxismo escolástico que se assenhorou do ensino nacional, desde o infantil, pela alfabetização materialista freiriana, ao pós-doutorado, com os medalhões impostados da vermelhidão docente universitária.  Por parte de mãe, romperam das trompas de uma mídia progressista e amoral, embirrada com a censura e o conservadorismo militar, e empenhada em estilhaçar qualquer grama de moralidade pela instrumentalidade de seus programas acintosos – de Xuxa Meneguel, a estranha amante, ao transgenerismo das mulheres-fruta, que ainda exigem catalogação, passando pelo orientalismo novelístico chamboqueiro de Glória Perez e pelo despudor frenético do horário nobre – nobilíssimo. 

O vitelo dos infantes foi toda proteína fera e execrável que se pôde produzir ou tonificar no século XX: amor livre, libertinismo, ateísmo, leninismo, secularismo, abortismo, cientificismo, utopismo, canalhismo, sem vergonhismo e outros frumentos parelhos. Sua gestação foi zelosa, coberta de carinhos totalitários. Muito mais que nove meses, foram-se bons 30 anos de hegemonia intolerante. Quanto maior a clausura na placenta da imoralidade e da desumanidade, mais robusta e mais rija veio ao mundo a alimária. 

Dos genes paternos herdou-se a certeza ignorante dos males do capitalismo, o coitadismo profissional do discurso do oprimido, a indolência inveterada de uma redenção estatista, a estadodependência de um paternalismo falido e a ficção inexequível e irresponsável de suas utopias, bulas infalíveis para a tirania e o humanicídio. A genética materna ensinou que a automoralidade, que é o mesmo que amoralidade, é consequência da inevitabilidade cronológica do tempo. A neuroenfermidade do relativismo moral foi saudada como progresso, e a sabedoria dos avós foi sepultada sob a lápide da caretice. 

De um lado, aparatou-se um enxoval vermelho, com direito a chicutas lentes de contato, vermelhas e inamovíveis. De outro, sublimou-se qualquer lastro objetivo de conduta ética, rebatizando a ‘liberdade’ de ‘anarquia moral’. O sustento umbilical, portanto, portou a noção de que tudo o que remete a Deus, à família, à moral, ao conservadorismo, à prudência, à cautela, ao respeito histórico, tudo isso deveria se alojar nos neurônios do preconceito e no córtex da maldade intrínseca. Tudo o que fosse “luta”, mudança social, confronto do “sistema”, libertinagem, autojustiça, redencionismo político, revolução, socialização, tudo isso, por sua vez, galvanizado na toxidez do mercúrio, foi celebrado como o emplastro salvífico de um país do futuro. 

E agora?

Agora tuas crias romperam a bolsa da desordem, pátria amada. Todos os neófitos que aqui chegam se põem a chorar, cientes do mundo decaído em que debutam. Teus novos filhos também choram, nos leitos asfaltados do teu seio: as ruas. Choram porque querem leite. Querem leite, querem pão, querem saúde, educação, open bar, sexo gratuito e de qualidade, querem o Lucas no lugar do Hulk, querem Kinder Ovo a R$1,00, querem aurora boreal nos trópicos e o resfriamento do Pólo Ártico. São filhos mimados, mal educados de útero, impermeáveis à palavra “não”. Estes caçulas não demonstram qualquer respeito pelos irmãos mais velhos, e se preciso for lhes saquear para impor sua vontade manceba, assim o farão, alegando inocência, democracia e, sobretudo, pacifismo. 

É a prole dos direitos. Filhos mais novos que, por uma estranha lógica familiar, se arrogam todos os direitos dinásticos. Mas os direitos quais? Todos, tudo que couber em suas vontades, de preferência o irrealizável: tarifa zero e diminuição de impostos, permutação de estádios em hospitais, blindagem contra crimes federais, imunidade incondicional ao terrorismo etc. Quanto mais utópico, melhor, assim se prescinde de analisar os meios de efetivação das pautas, de discuti-los e, principalmente, de propô-los. Basta gritar os fins, os desejos viscerais, e a mãe que se resolva. Não importa se esses direitos não são prescritos em qualquer lugar: nem na Constituição, nem na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, nem na Comissão de Direitos Humanos da ONU, nem mesmo na Declaração de Independência dos EUA. Ele está inscrito nos anseios socialista dos rebentos hodiernos, e isso basta. 

Eu, que ainda participo dessa geração de revolucionários de iPhone e Facebook, solidarizo com o choro, mas com ele não faço coro. Todo bramido de recém-nascidos deve ser ouvido, ele é sempre o significante de alguma coisa. Mas o berro violento, que assusta e intimida, o aulido que outorga sua vontade a qualquer preço, esse é um candidato indesculpável a boas palmadas corretivas. Não creio que se tratem de bebês anencéfalos, e só por isso não foram abortados por seus pais. Contudo, são ainda crianças sem instrução e sem educação, e que, se insistirem no berreiro estridente como mecanismo de atualização do império de sua vontade, só me resta lhes pedir, por obséquio, em bronco e exaltado linguajar: vão pra pátria que te pariu! Que eu, daqui a pouco, vou-me é embora.


Pedro

sábado, 15 de junho de 2013

Razão e Sensibilidade: uma breve opinião sobre as manifestações em São Paulo

Não é só por R$0,20. É muito mais que isso. É um desejo psicossomático incontornável de lutar contra qualquer coisa. Esta é uma fala pessoal e autoral, pela qual não empenho a palavra do blog. 

Quando a PM avançou sobre a USP em 2009 eu me fiz presente no campus. Participei da assembleia geral, em meio às barricadas da Av. Professor Luciano Gualberto, que definiu que o mundo seria um lugar melhor sem a Polícia Militar. Ali eu me convenci de uma desconfiança nutrida há algum tempo: o movimento estudantil brasileiro é uma ode à irracionalidade humana. Uma comissão de estudantes da Faculdade de Economia (FEA), do Instituto de Matemática (IME) e da Politécnica definiu que levariam testemunhos aos seus respectivos institutos, convidando os estudantes aos protestos. Tudo muito racional e sensato. No instante seguinte o microfone ecoa os berros animalescos de uma criatura que exigia a invasão imediata das sobreditas faculdades e a instalação de barricadas intransponíveis. Os estudantes transbordaram de êxtase. Ingênuo e atordoado, reivindiquei a voz e denunciei o desatino contraproducente daquele brado e daquela atitude. Ouvi um silêncio desconfortável e o ensaio de algumas vaias.

Então eu soube: o movimento estudantil e seus adeptos são muito mais sensíveis do que racionais. Estão sempre dispostos a se comover com uma fala belicosa em nome de um suposto bem, sempre ansiosos por aderir a uma utopia integralmente impraticável, factível somente nos sonhos cardíacos dos manifestantes. Não importa a ordem e a racionalidade de uma manifestação. A depender dos partidos e órgãos políticos (PSTU, PSOL, PCO, CUT, UNE etc.) que controlam do início ao fim a pauta e o desenrolar dessas assembleias, o que importa é promover a luta social. São movimentos de luta. São partidos de luta. E a luta não é pacífica, nem nunca foi. É por isso que circulam imagens pelo facebook ironizando o repúdio ao vandalismo e à desordem. Afinal, a Revolução Francesa não zelou pela ordem e pelo patrimônio. 1968 tampouco. A tradução mais literal, que a esquizofrenia revolucionária não tem coragem de assumir, é que o vandalismo é legitimado e a desordem é justificada se o bem maior for promovido. Tudo em nome da revolução.



É muito mais que R$0,20. Trata-se da revolução social. Como disse um cartaz, “Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”. Nada mais fácil que mover as sensibilidades cidadãs dessa maneira. É assim que uma manifestação engrossa suas fileiras. Protestam, são reprimidos, se vitimizam, apelam aos nervos dos cidadãos, e a marcha se avoluma. Dos poucos milhares do movimento inicial à centena de milhar que promete entupir o Largo da Batata na segunda-feira, há muita sensibilidade e uma racionalidade rarefeita. O magnetismo do movimento não é a causa boa, justa, razoável e transparente da melhoria do transporte público. É o desejo de mobilização, é a catarse coletiva, é o orgasmo psicológico que a ânsia de transformar o país promove. Os R$0,20 já não são mais nada perto da oportunidade inestimável de dizer “eu estava lá, quando tudo se fez novo”. Tamanha é a necessidade patológica de lutar que passaram a acusar as forças militares de atitudes ditatoriais. Mal se cabem de inveja das gerações que realmente enfrentaram os anos de chumbo. O desejo de reeditar aquela luta mobiliza infinitamente mais do que os 20 centavos. 

Assim, fique sepultado o mito do diálogo. O movimento não quer diálogo, e nunca quis. Não se dialoga com palavras de ordem que têm, todas, ponto final ou de exclamação. Não se dialoga empunhando bandeiras vermelhas. Não se dialoga no asfalto na Av. Paulista. ‘Diálogo’, no paradigma semântico dos protestos, significa acato incondicional às demandas do movimento. Não há qualquer possibilidade do diálogo se encerrar com o esclarecimento da inviabilidade matemática da impugnação do aumento. O único desfecho possível de um diálogo é aquele em que a palavra final do governo deve ser “pois não, senhores”. E qualquer manifestante que diga o contrário disso é um desavergonhado, no rigor da palavra, pois se jogasse com a possibilidade racional da negativa, nem estaria na rua. Mas desavergonhado é uma palavra demasiadamente forte à sensibilidade revolucionária.

A coisa tende a piorar. Segunda-feira me parece o Dia D. A promessa é de mais de cem mil em Pinheiros. Unidos para que? Na melhor das hipóteses, para gritar, bem alto, que “R$3,20 é um assalto”. Seria muito pedir que essas cem mil pessoas oferecessem alguma solução alternativa ao aumento da tarifa? Digo soluções racionais, não um devaneio onírico que sustenta a nulificação das taxas (com prejuízo de quem trabalha mais e ganha mais). É evidente que o idilismo da proposta movimenta milhares, mas a racionalidade de sua inexequibilidade só consegue acumular disfemismos. Na prática, esse oceano de pessoas vai fazer uma só coisa: gritar que a tarifa está cara. Sem propostas, sem soluções, sem alternativas reais e exequíveis. Isso é problema do governo. O estado que resolva. Como recém-nascidos que choram pelo leite, independente da robustez da mãe, assim se exige uma solução do estado sem qualquer consideração por sua saúde. 

Mas o estado brasileiro está anêmico. Isso porque o estado, sinto dizer, somos nós. A trivialidade entra em ação: dinheiro não se planta, não se colhe e não cai do céu. Diminuir tarifas é aumentar impostos. O prefeito Fernando Haddad informou que o aumento abaixo da inflação acumulada de dois anos acarretou um subsídio de 600 mi de reais aos cofres públicos. “Cofres públicos” é uma alusão eufemística ao nosso bolso, e não às gavetas lacradas do Banco Central. Manifestações em que o bramido é a redução de tarifas com ônus para “o estado” não passam de doses tóxicas automedicadas em um doente moribundo.  Bem vindos ao estado brasileiro assistencialista: obeso, inepto, deficiente, corrupto, canhestro, desjeitoso, inábil, estavanado e desastrado. Contribuir para a morbidez desse governo não alivia em nada a austeridade da vida no país, e sim o contrário. 


Ao que tudo indica, um grupo não foi rendido pela sensibilidade dos movimentos paulistanos, e optou pela racionalidade de soluções alternativas. Organizarão um protesto paralelo, cujo objetivo é conscientizar a população de outros mundos possíveis onde o transporte público poderia ter um preço justo e uma qualidade digna. Estarei lá. Recuso-me à vitimização do Largo da Batata, sublinho a conscientização do vão do Masp. Enquanto segunda-feira não chega, estarei em oração para que este movimento, movido pela razão, não se deteriore na bílis e no mimo da sensibilidade. 

Post Scriptum

Voltei para compartilhar o trecho de uma entrevista de Roger Scruton que diagnostica com precisão o que penso sobre os manifestos paulistas ocorridos até agora.

APESAR DO COLAPSO DO COMUNISMO E DE OUTRAS TRAGÉDIAS SEMELHANTES, AS PESSOAS CONTINUAM AGARRADAS A CAUSAS UTÓPICAS. PORQUÊ?

SCRUTON - O pensamento utópico sobrevive porque não se trata realmente de uma ideia, mas de um substituto de uma ideia, algo que serve de alívio para a difícil – e geralmente depressiva – tarefa de ver as coisas como elas são realmente. É uma forma de vício, um curto-circuito que afasta os indivíduos da razão e do questionamento racional e efetivo. O pensamento utópico remete-nos diretamente para o objectivo, passando por cima da viabilidade do projeto. É fácil digeri-lo e incorporar o seu optimismo mal-intencionado e sem fundamento. O problema vem depois, quando a utopia termina em fiasco.