quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Comentários sobre a discussão suscitada pelo post "A Virtude da Vingança"

    Nota introdutória: esta postagem deve ser entendida à luz da discussão suscitada pelo post "A Virtude da Vingança" (http://eusou-racional.blogspot.com.br/2012/11/a-virtude-da-vinganca.html). Minha intenção aqui é aproveitar a ocasião em que temas tão relevantes para a cosmovisão cristã, negligenciados em geral, foram trazidos à tona pelos comentadores, e tratá-los com um pouco mais de cuidado do que eu poderia fazer se me limitasse a responder aos comentários postados.


    Gostaria de elogiar a colaboração de todos nos comentários do artigo "A Virtude da Vingança", especialmente ao colega Gibran, pois a profundidade e a extensão de seus comentários mostram não só uma capacidade louvável de análise e julgamento crítico, mas também decorrem certamente de lenta e laboriosa reflexão, o que se torna um motivo para agradecermos, por ter sido tal esforço empreendido em favor de nossa discussão. Peço aqui a oportunidade de, humilde e respeitosamente, dar minha opinião sobre os comentários e objeções feitas, salientando que, além de não ter a pretensão de ter todas as respostas, as poucas que tenho estão longe de serem perfeitamente satisfatórias; e que, por se tratar aqui do meu entendimento da cosmovisão cristã, ainda em processo de gestação/amadurecimento, minha falta de êxito não deve implicar necessariamente no "fracasso" de qualquer tentativa de validação de tal visão de mundo. 

     Concordo plenamente com meu amigo Pedro Issa quanto ao caráter não “demonstrável” do cristianismo, que nunca fez nem fará promessas de que todas as suas proposições sejam justificáveis ou explicáveis clara e distintamente por meios racionais. De fato, o fundamento da fé, em última análise, surge de uma experiência com Deus. Como afirmava o ilustre Pascal, a fé cristã é uma convicção inabalável, que nasce do fato de que Deus manifesta-se nítida e indubitavelmente ao coração do homem que o procura com toda a sinceridade. (Leibniz também fala de algo parecido na Teodicéia, quando diz que a fé é uma firme convicção produzida pelo próprio Deus no espírito humano, que “se apodera” completamente de nossa alma e nos faz ter prazer Nele). As verdades tanto da existência de Deus como de seu amor, bondade e justiça são experimentadas durante todo um trajeto de vida de devoção, na qual a presença de Deus e a sucessão dos acontecimentos em resposta às orações são suficientes para ser ter certeza. Há, entretanto, razões para que seja uma experiência transcendente o critério final de decisão: primeiro, por causa da transcendência, infinitude e complexidade próprias ao objeto que se quer conhecer; depois, porque, no que se refere à certeza dos homens sobre Ele mesmo, o próprio Pascal atesta que a intenção de Deus é “confundir os que não O querem conhecer com toda a sinceridade” – motivo pelo qual Deus permanece com um “que” de mistério, ao invés de se mostrar ao mundo com maravilhas e milagres capazes de convencer forçosamente aos mais incrédulos dos homens, preferindo aparecer ao que querem vê-LO. Assim sendo, a falta de evidências incontestáveis ou de razões necessárias e universais não compromete a verdade e solidez da fé, nem se torna uma razão suficiente para a falta dela. A diferença é que a certeza se dá por outros meios - e nem poderia ser de outra forma - e esse fato é ele mesmo atestado pela razão, conforme o que foi dito acima. Não precisamos do aval da intelectualidade para repousarmos seguros em Deus.

     Entretanto, não sei se por uma “teimosia” minha, que insiste em racionalizar as coisas, ou se por uma tendência apologética, acredito que essa impossibilidade de fornecer razões necessárias aos mistérios e ao divino não significa que devemos renunciar à tentativa de justificação racional da fé. Tampouco significa admitir que, por sua não-inteligibilidade, a fé encerra contradições e absurdos lógicos. Essa confusão, no fundo, decorre de se ignorar uma distinção que Leibniz traça com grande lucidez entre aquilo que está para além da razão e aquilo que é contrário a ela. Se opondo a céticos como Bayle e Montaigne, que acreditavam que defender a fé seria absurda presunção, pois exigiria dar a razão do inexplicável, responde o filósofo que podemos sim defender a fé, não mostrando que suas proposições decorrem necessariamente de hipóteses que sabemos serem verdadeiras, mas sim ao se mostrar que os enunciados da fé são possíveis, ou seja, que não escondem contradições e impossibilidades lógicas. Assim sendo, o caso é que a fé cristã está para além da razão, mas jamais é contrária a ela. Ouso assim dizer que é possível defendê-la por meios racionais!

     Um princípio lógico básico afirma que a negação de uma sentença do tipo 'A implica B' não é a sentença 'A implica (não-B)', e sim 'A não-implica B'! (Assim como, p. ex., para negarmos que 'Se x é um homem, então x é assassino' não devemos provar que 'Se x é um homem, então x nunca é assassino': basta mostrarmos que pelo menos algum homem x não o é: aqui importa-nos destruir não a tese, mas o vínculo de necessidade dela em relação à sua hipótese). Assim sendo, se uma objeção à fé é feita sob a forma 'A implica B', em que A é uma afirmação inequívoca e da qual não se pode duvidar, e B é uma sentença totalmente incompatível com a fé, não precisamos provar que “não-B” é verdade, e sim mostrar que não é necessariamente verdade que, se A é verdade, B o é. Desta forma, fica dissolvida a objeção de meu amigo Gibran, segundo a qual a posição cristã é irracional, supostamente “se refugiando” em razões ocultas de Deus para justificar sentenças e atos irracionais. Pois logicamente falando, para defender a cosmovisão cristã, não é exigido que explicitemos um argumento em que as asserções que defendemos decorram necessariamente de proposições universalmente válidas, e sim que mostremos que as objeções feitas à fé é que não são necessárias, antes são meramente aparentes; ou seja, basta que mostremos que da fé bíblica não decorrem afirmações obviamente falsas, nem que há contradições entre suas afirmações – embora ela inclua mistérios. (Por isso, acredito que diante da pretensa "obviedade" da falsidade ou absurdo de algumas asserções cristãs, o que realmente deveria ser feito é explicitar qual é a razão pela qual ela são tão falsas ou absurdas assim). 

     Tampouco fica um cheiro de “derrota” no ar, como se propuséssemos uma versão “fraca” de cosmovisão racional: pois, olhando ao redor com honestidade e imparcialmente, qual de nós é capaz de oferecer tal sustentação racional, explicitando razões suficientes para o mistério do Ser e da vida, qualquer que seja a visão de mundo defendida? Talvez estejam exigindo de nós algo que eles mesmos não podem fazer – seguindo um paradigma de racionalidade tão elevado que, confesso, não podemos satisfazer... mas tampouco eles próprios o podem. (Exceto se ficarem tão restritos nas hipóteses, para prevenirem-se de objeções, que pouco são capazes de explicar: evita-se o risco evitando-se igualmente a possibilidade de ganho).

     Até onde sei, existem três formas de se invalidar uma teoria. A primeira, mostrando que uma (ou mais) das hipóteses de que depende é (são) falsa(s). A segunda, mostrando a inconsistência de tais hipóteses, ou seja, verificando-se que a assunção simultânea delas leva a conclusões contraditórias. (Aqui, não se está interessado na validade “local” das premissas, ou em seu valor intrínseco de verdade: o que importa saber é a coexistência lógica delas, ou seja, se a assunção de todas elas é capaz de produzir afirmações incompatíveis). A terceira, mostrando que da teoria se produzem consequências absurdas ou totalmente contrárias à evidências certas e verdades conhecidas. As objeções feitas devem ser encaradas segundo essas categorias, para que se possa tratá-las conforme o método que lhes é próprio – se aqui queremos falar com objetividade e rigor. Também, embora por sua força comovente seja difícil a eles resistir, deixemos de lado os aspectos emotivos que o tema inevitavelmente traz – especialmente se somos nós que estamos passando pelo “vale escuro” do sofrimento. Por fim, definamos bem os termos e entendamos bem o que queremos dizer com cada palavra, evitando os “ídolos do foro”, que são as imprecisões ou ambiguidades linguísticas.

     Uma objeção feita, se entendi bem, é que a cosmovisão cristã entra em contradição ao condenar, por um lado, a vingança e o desrespeito à vida, e por outro, ao acreditar que Deus tenha o direito de condenar um pecador ao sofrimento em recompensa aos seus pecados ou ter realizado justiça por meio de seu povo. Mas precisamos ter cuidado aqui. Primeiro, porque nunca se deve partir daquilo que se quer mostrar. Entretanto, ao apelar para a força inerente de expressões como “tão absurda quanto a matança de indivíduos” ou como “atrocidades que assim não são vistas apenas por estarem supostamente justificadas”, ou ainda “desvalorizando a vida, enterrando o indivíduo, matando os sentimentos e sepultando nossa própria humanidade”, parece-me que é justamente isso que nosso amigo Gibran está fazendo – pois ao qualificar dessa forma a ação divina em contraste com o princípio da não-vingança ou violência, está já assumindo a priori que aquilo que alega ser um ato de injustiça da parte de Deus, de fato, o é – sem ter antes definido o que vem a ser o valor da vida, o que vem a ser a justiça divina e como isso implica que a ação divina não faz justiça ao valor do indivíduo.

     Além disso, se a acusação que nosso colega faz é de contradição, ela recai na segunda categoria, o que exige que, no mesmo sentido dos termos, e sob a luz de todas as hipóteses cristãs, aquilo que se chama vingança ou violência na perspectiva humana é o mesmo que se chama “justiça” na perspectiva divina. Mas essa alegação, ao meu ver, não se sustenta. Primeiro, porque a natureza da ação humana e seus efeitos não são os mesmos daqueles da ação divina. Por quê? Pois (i) a ação humana é incapaz de produzir justiça, seja porque somos incapazes de saber o que é devido a cada um por suas más ações, seja porque acaba por gerar mais violência, sem fazer justiça e sem “resolver o problema” – ao contrário da ação divina, que (estamos supondo) ser justa, onisciente e eficiente; (ii) no caso da ação humana, temos um ser injusto querendo fazer justiça a outro injusto – ao contrário da ação divina, em que é um Ser santo fazendo justiça a um ser injusto; (iii) a ação humana tem por essência o desejo de retribuir o mal sofrido, querendo que o outro “sinta o que eu senti”, sem levar em conta a paciência e a benevolência – ao contrário da ação divina, em que um Ser inalterável pelas ofensas tem por única finalidade o fazer justiça em relação ao que o outro merece, sem deixar de dar inúmeras chances de arrependimento, ao invés de fulminar o pecador em seu primeiro ato injusto. É verdade que essa paciência não se dá ad eternum, pois isso seria postergar indefinidamente a justiça sem nunca realizá-la. Mas quem disse que o amor, a misericórdia e o respeito à vida da parte de Deus implicam uma eterna impunidade, em que fazemos o que queremos sem quaisquer punições? Isso seria partir de uma hipótese contrária a cristã – a saber, a da inseparabilidade da bondade e da justiça divinas –, o que vai contra o método que deve ser usado quando se trata de uma acusação de inconsistência – que é o caso aqui. Além do que, o argumento em questão considera a questão da punição divina isoladamente o que até mesmo eu consideraria um ato tirano ou vingativo da parte de Deus, se separado do fato de que o próprio Deus sofreu, sem ter culpa alguma, a punição que era nossa, tamanho era seu desejo de não nos punir. À luz dessas duas hipóteses, a ação divina pode parecer tudo, menos vingança ou crueldade. Assim sendo, a inconsistência alegada é, na verdade, um mal-entendido decorrente da ambiguidade no uso dos termos justiça/vingança, que só tem força retórica, mas não lógica.

     Uma segunda forma como poderíamos entender essa objeção seria colocá-la na terceira categoria, reivindicando que, ao pensar em um Deus que pune gravemente um pecador, estaríamos indo contra uma ideia geral e universal de “valor intrínseco da vida” ou de “liberdade de expressão da singularidade do homem”. Mas aqui surgem novos problemas. O primeiro é que não se pode dizer, ao mesmo tempo, que Deus valoriza a vida que criou sem aceitar necessária e simultaneamente que ele é justo ao punir os atos maus que são cometidos contra ela. Pois se aceitamos que a vida é preciosíssima em sua singularidade, devemos aceitar igualmente que agir contra ela constitui-se atrocidade indesculpável; ao passo que, se dizemos que Deus é injusto ao punir aquilo que se faz contra o ser individual, precisamos necessariamente assumir que as más ações feitas contra ele não são tão graves assim, o que nos leva, de fato, ao cúmulo da desvalorização da vida. (Até podemos discutir futuramente se a vida é valiosa ou não, ou se Deus é justo ou não ao punir os crimes feitos contra a vida; agora assumir ambas as coisas ao mesmo tempo – o valor inestimável da vida e a injustiça de Deus ao punir –, isso não é possível, pelo menos se quisermos evitar a contradição.)

     Além disso, é justamente a singularidade e o valor da vida que fazem com que o mau uso dela por parte do próprio indivíduo seja algo tão grave. Isso aprendi com minhas rasas e breves leituras de Kierkegaard: a gravidade do pecado está justamente em ser este um ato de um “eu” frente a Deus, ato que é mau na proporção da grandeza da natureza de indivíduo, dada pelo próprio Deus para que a usemos livremente – porém não num sentido absoluto da liberdade, e sim dentro de Sua vontade. Será que além de seu valor inalienável, o indivíduo não possuiria também um valor moral, dado em função do modo como vive sua vida?

     O cristianismo aceita, sim, a não-arbitrariedade dos valores de justiça, fundados na natureza divina e válidos universalmente e sob uma “forma unificada, claro, que valha para homens e Deus”. Porém não podemos nos esquecer de que a igualdade dos valores não implica necessariamente na igualdade dos procedimentos: segundo iguais valores, dois seres diferentes podem agir de forma diferente, seja pela diferença de situações, seja por situarem-se numa relação diferente entre si, ou mesmo pela natureza ou potência do ser que age. Em outras palavras, a uniformidade de valores se torna heterogênea diante da diversidade dos seres, o que faz com que não seja verdade que há “um peso (assassinato) e duas medidas (errado o homem se vingar, mas prerrogativo que Deus faça uma pretensa justiça.)” A forma como valores universais se dão pode mudar em relação à natureza do agente e do paciente – no caso, de Deus e dos homens – sem perderem seu caráter de universalidade.

     Sobre o sacrifício de Cristo, seu papel, significado e modo como repara nossa culpa e condição de pecado, prefiro recomendar a leitura dos capítulos 3 a 5 do livro II da obra de C. S. Lewis, “Cristianismo Puro e Simples”, que coloca o tema de modo muito mais claro e preciso do que eu poderia fazer. Só queria comentar que o fato de que o sacrifício de Cristo foi “revertido” pela ressurreição, e portanto não perdurou eternamente, não torna-o insuficiente para redimir um castigo eterno, como se este e aquele fossem “incomensuráveis”. Acredito que a grandeza, a sublimidade e a santidade de Cristo sejam tamanhas (supondo, é claro, sua divindade, pois estamos tomando todas as hipóteses cristãs) que mesmo um intervalo de tempo finito e limitado que ele tenha vivido seja “equivalente” a uma porção infinita de tempo de tormento que o pecador viveria – tal como existem em matemática funções que são capazes de percorrer toda a reta real partindo de um intervalo finito da reta. A questão é a relação de equivalência entre os tempos divino e humano: o problema em questão só existe se os pensarmos de igual para igual, o que erra ao desconsiderar a diferença entre as naturezas divina e humana.

    Espero que, apesar da prolixidade, minha opinião tenha trazido alguma luz à discussão. Um feliz ano novo e um abraço a todos!