sábado, 16 de fevereiro de 2013

Repensando o Divórcio entre Ciência e Religião, Parte II: O Banquete aos Vilões

Novas saudações aos leitores!

Cumprindo a promessa, ofereço aqui um segundo texto de cariz mais teórico a respeito do relacionamento entre ciência e religião. No primeiro texto, lancei as bases para o questionamento daquilo que nos parece, hoje, natural: que ciência e religião não devem se imiscuir, que existem reinos distintos para cada uma delas e que o melhor que podemos almejar é a não intromissão de seus cetros. A isso, contrapus que o próprio contexto histórico em que a ciência moderna é gestada foi um ambiente profundamente cristão. Agora, sigo o argumento de que isso não é por acaso, e que disso não poderia ser diferente.

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Comecemos dizendo que todos aqueles cujo patriarcado da ciência moderna é reconhecido se afirmaram cristãos convictos. Copérnico, Galileu e Descartes, católicos, Kepler, Newton e Boyle, protestantes. É possível criticar a coerência epistemológica desses homens, mas existe um fato que é inescapável: todas as suas descobertas repousam sobre princípios fundacionais da tradição judaico-cristã.

Auguste Comte, fundador
da filosofia positivista
Grandes tentativas de obliterar esse fato se deram durante o século XIX, com o reinado do positivismo, uma filosofia que buscava traçar uma nítida linha demarcatória entre ciência e metafísica (incluindo a religião). Buscou-se, a qualquer preço, transformar Galileu e Newton em homens ateus, paladinos de um racionalismo materialista, como se não pensassem em nada além dos números e das experiências, e como se renunciassem a qualquer abordagem do sobrenatural. Um dos banqueiros dessa visão foi Ernst Mach, com sua obra A Ciência da Mecânica. 

Mas essa tentativa fracassou - pelo menos na academia. Historiadores e filósofos da ciência, cristãos ou não, perceberam muito cedo o tamanho da tolice de ignorar os pressupostos religiosos por esses homens professados. Uma das saídas para enfrentar o desafio de explicar as crenças metafísicas dos fundadores da ciência moderna foi dizer, simplesmente, que "ninguém é perfeito", fazendo da religião um fardo muito pesado para ser descarregado tão cedo, mas que, aos poucos, os verdadeiros cientistas livremente abandonariam. A outra saída, muito mais honesta e produtiva, foi procurar entender de que forma esses pressupostos religiosos se relacionavam com suas ideias científicas. Nessa segunda linha, Pierre Duhem lançou, em três volumes, seus Estudos sobre Leonardo da Vinci, onde detecta as origens da ciência moderna em dois padres do século XIV: Jean Buridan e Nicolau Oresme. Duhem mostrava, assim, que os princípios eminentemente "científicos" não eram opostos a uma visão de mundo teocêntrica como a medieval. Em 1924-25, duas contribuições inestimáveis foram feitas nesse sentido. Edwin Arthur Burtt, que mais tarde se dedicaria à filosofia da religião, lançou duas obras seminais: As bases metafísicas da ciência moderna, e A metafísica de Sir Isaac Newton. Ali, Burtt demonstra de que forma os princípios metafísicos dos primeiros cientistas, incluindo sua religião, contribuíram de forma decisiva para a formulação de sua ciência.

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A bibliografia sobre o compadrio entre ciência e religião é vastíssima. Ao invés de persistir citando nomes e autores, quero comentar algumas ideias que respondem diretamente à pergunta: mas de que forma, afinal, a religião pode ter promovido e suportado a ciência? 

Cristianismo e Ciência

O Cristianismo arrasta uma visão de homem e de mundo já anunciada com os hebreus. (Talvez caiba lembrar que toda a Bíblia, da primeira à última palavra, foi escrita por hebreus). Os hebreus, diferentemente dos povos que os cercavam - egípcios, babilônicos, persas, fenícios etc - não enxergavam a natureza como um conjunto de entidades demiúrgicas. A natureza, para os hebreus, não é Deus, mas reflete Deus. A natureza não é viva, não é uma força em si. A natureza não compõe os elementos criadores do mundo, ela é, antes, criação de Deus. Disso decorre, necessariamente, um desencantamento da natureza, que abre as portas do estudo da natureza em si. No bojo de uma cosmovisão panteísta-politeísta, a natureza se confunde com deus, e não é objeto de análise, mas de reverência. Os hebreus jamais reverenciam a natureza, mas sim o Criador da natureza. 

Nos séculos XVI e XVII, essa visão de mundo judaico-cristã recebeu uma injeção de pensamento grego, em decorrência do Renascimento. Filósofos da Antiguidade clássica, cujas obras haviam sido compostas há mais de mil anos, foram reintroduzidos no pensamento científico cristão. Quem foram esses autores? Platão e Pitágoras, os matemáticos, Arquimedes, o experimentalista, e Demócrito, o pai do átomo. Dessa união de uma visão dessacralizada da natureza, proveniente do Cristianismo, com um pensamento matemático-experimental da Antiguidade nasce a ciência moderna.

Como já assinalamos no primeiro post, ao falarmos das ideias de Joseph Needham, a ideia de que existem leis imutáveis e escrutináveis na natureza é outro elemento fundacional do Cristianismo que promoveu o desenvolvimento científico. Em uma visão de mundo como a de Heráclito, filósofo grego, que nos diz que tudo flui, que nada nunca é igual a si mesmo, em que o fluxo eterno de todas as coisas as torna sempre diferentes de si mesmas, a ciência é virtualmente impossível. Assim, é imperativo o pressuposto de que há um corpo permanente de determinações que regem o mundo por detrás do mundo.

Protestantismo e Ciência

Primeiro número do
periódico da Royal Society
Desde o início do século XX, aproximadamente na década de 1930, uma volumosa bibliografia vem surgindo sobre a relação entre a Reforma Protestante e a Revolução Científica. Descobriu-se que, no século XVII, cerca de 70% dos membros da Royal Society, mais importante centro de promoção científica do período, eram puritanos, isto é, calvinistas, ou então anglicanos. O que é, afinal, que cimenta o pensamento protestante e o pensamento científico? Historiadores levantaram diversas explicações.

Sacerdócio Universal
É consagrada, na tradição protestante, a doutrina do sacerdócio universal, que sustenta o relacionamento imediato do homem com Deus e se opera por meio do acesso direto ao Livro da Revelação, isto é, a Bíblia. Transposta para a ciência, essa ideia ofereceria ao homem um contato direto com a natureza, sem a mediação das autoridades intelectuais ou o controle do clero na leitura do Livro da Criação, ou seja, da Natureza.

Voluntarismo
Ligada à noção da plena soberania de Deus, filósofos calvinistas defendiam que Deus poderia ter criado o mundo da maneira que desejasse, com as leis que bem entendesse. Deus poderia ter criado um mundo em que não houvesse gravidade, por exemplo. Significa que é impossível acessar racionalmente, por meio da lógica, quais as leis que regem o universo. Elas só podem ser descobertas por meio da investigação empírica, que recebeu um grande estímulo por parte dos voluntaristas

Mecanicismo
O ceticismo protestante em relação aos milagres católicos, à transubstanciação, aos efeitos espirituais dos sacramentos, da ação de santos e sacerdotes, tudo isso corroborou para a noção de um universo onde a magia não tem espaço, onde tudo se opera por leis mecânicas pré-definidas. Ficou evidente, como lembrou Leibniz mais tarde, que o puro mecanicismo é algo nocivo à ciência, mas a noção de leis mecânicas foi nevrálgica para a ciência moderna. 

Laicização
A Reforma, segundo alguns historiadores, teria rompido com a prerrogativa científica do clero, abrindo espaço para novas abordagens ao mundo natural que não se pautavam pelas diretrizes do pensamento aristotélico-tomista. 

Literalismo
A leitura literal da Bíblia, promovida pelos reformadores, ia ao encontro da leitura alegórica da Bíblia, consagrada desde Santo Agostinho. Dessa forma, a visão da natureza deixou de ser vinculada a uma alegoria bíblica e abriu espaço para que fosse estudada em si, e não como reflexo de alguma doutrina escritural. 

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Outros (muitos) exemplos da irmandade entre ciência e religião são possíveis. Mas como e por que surge, então, a visão de um divórcio, e mesmo um conflito inveterado, entre Ciência e Religião? Quero oferecer uma breve observação sobre isso.

Sir Isaac Newton
O Iluminismo (ou Ilustração) é o ponto de partida dessa visão. Especificamente o Iluminismo francês. A França, que no século XVIII viu germinar um espírito de combate ao Antigo Regime e a tudo o que lembrasse o universo medieval, colocou-se decididamente em oposição ao clero católico, seja institucionalmente, seja politicamente, seja filosoficamente. Isso se refletiu de forma clara quando da importação da filosofia de Newton, que atravessou o Canal da Mancha mas deixou para trás seus princípios cristãos. O historiador Peter Gay se refere à entrada da filosofia newtoniana na França como "A Física de Newton sem o Deus de Newton". O espírito anticlerical da França, em inúmeros sentidos, inviabilizava a adoção dos pressupostos cristãos da filosofia de Newton. A separação entre Estado e Igreja, consumado pela Revolução Francesa, foi apenas um reflexo do espírito secularizante. Seguindo esse mesmo espírito, também a Ciência estaria, doravante, divorciada da Religião.  

No século XIX duas grandes correntes filosóficas foram responsáveis pelo aprofundamento desse fosso. A primeira foi o positivismo, que propunha uma evolução em três estágios no pensamento humano: o teológico, em que o homem explicaria o mundo em termos religiosos, o metafísico, em que se recorreria a explicações de ordem sobrenatural, mas não mais religiosas, e o positivo (ou empírico), em que as únicas explicações válidas seriam aquelas decorrentes da experiência e comprovação empírica. O positivismo sustentava que a última etapa de pensamento era necessariamente melhor, e que, portanto, era imprescindível libertar a ciência da religião. A outra corrente foi, é consabido, o darwinismo. De forma complexa e impactante, sobre a qual não podemos entrar no mérito aqui, o pensamento darwinista foi um dos responsáveis pela secularização da ciência, principalmente pelo questionamento da Bíblia como fonte para verdades científicas.

Se você estiver nos acompanhando até aqui, o quadro que temos é o seguinte: o iluminismo, o positivismo e o darwinismo foram os principais responsáveis pelo divórcio entre a Ciência e a Religião. A questão que se coloca, a verdadeira e mais importante questão, é: isso foi bom ou ruim? Para respondermos, basta lembrar que essas filosofias traíram a própria Revolução Científica ao negar seus fundamentos cristãos. A cisão entre Cristianismo e Religião foi profundamente antinatural, e, ignorantes disso, continuamos recebendo efusivamente o iluminismo e o darwinismo, como que oferecendo um banquete aos vilões da história. Assim, retomo a crítica que fiz no primeiro texto a respeito da naturalidade com que hoje vemos a separação entre Ciência e Religião. Ela não é natural, é bem o oposto disso. Historicamente, foi a partir do século XVIII que essa falácia começou a conquistar a intelectualidade, uma mentira à qual somos rendidos até os dias de hoje. 

Obra de Andrew D. White
E para selar definitivamente o abismo entre ciência e religião, faltava uma explicação de longa duração que evidenciasse o conflito. Faltava um discurso que mostrasse de que forma esse princípio regeu o desenvolvimento da ciência. Faltava, portanto, uma história. Essa história surge em 1896, pelas mãos de Andrew Dickson White, citado na abertura do primeiro post. Sua obra em dois volumes, Uma História da Guerra da Ciência com a Teologia na Cristandade interpreta a história de diversos ramos da ciência, desde a Antiguidade até o século XIX, como um conflito ferrenho entre um conservadorismo religioso que atravanca o progresso científico e uma ciência libertadora que beneficia a humanidade. White, portanto, fez o desserviço de ocultar os fatos por meio da história. 


Essa é a obra responsável pela criação dos diversos mitos que abordarei nas próximas postagens. Começarei pelo Mito da Terra Plana, mostrando de que forma forjou-se a indiscreta mentira de que os cristãos medievais pensavam que a Terra fosse plana.



Abraços e até a próxima!