Nota introdutória: esta postagem deve ser entendida à luz da discussão suscitada pelo post "A Virtude da Vingança" (http://eusou-racional.blogspot.com.br/2012/11/a-virtude-da-vinganca.html). Minha intenção aqui é aproveitar a ocasião em que temas tão relevantes para a cosmovisão cristã, negligenciados em geral, foram trazidos à tona pelos comentadores, e tratá-los com um pouco mais de cuidado do que eu poderia fazer se me limitasse a responder aos comentários postados.
Gostaria de elogiar a colaboração de todos nos comentários do artigo "A Virtude da Vingança", especialmente ao colega Gibran,
pois a profundidade e a extensão de seus comentários mostram não só uma
capacidade louvável de análise e julgamento crítico, mas também decorrem
certamente de lenta e laboriosa reflexão, o que se torna um motivo para
agradecermos, por ter sido tal esforço empreendido em favor de nossa
discussão. Peço aqui a oportunidade de, humilde e respeitosamente, dar minha
opinião sobre os comentários e objeções feitas, salientando que, além de
não ter a pretensão de ter todas as respostas, as poucas que tenho estão longe de serem perfeitamente satisfatórias; e que, por se tratar aqui do meu
entendimento da cosmovisão cristã, ainda em processo de
gestação/amadurecimento, minha falta de êxito não deve implicar
necessariamente no "fracasso" de qualquer tentativa de validação de tal
visão de mundo.
Concordo plenamente com meu amigo Pedro Issa quanto ao caráter não
“demonstrável” do cristianismo, que nunca fez nem fará promessas de que
todas as suas proposições sejam justificáveis ou explicáveis clara e
distintamente por meios racionais. De fato, o fundamento da fé, em última análise, surge de uma experiência com Deus.
Como afirmava o ilustre Pascal, a fé cristã é uma convicção inabalável,
que nasce do fato de que Deus manifesta-se nítida e indubitavelmente ao
coração do homem que o procura com toda a sinceridade. (Leibniz também
fala de algo parecido na Teodicéia, quando diz que a fé é uma firme
convicção produzida pelo próprio Deus no espírito humano, que “se
apodera” completamente de nossa alma e nos faz ter prazer Nele). As
verdades tanto da existência de Deus como de seu amor, bondade e justiça
são experimentadas durante todo um trajeto de vida de devoção, na qual a
presença de Deus e a sucessão dos acontecimentos em resposta às orações
são suficientes
para ser ter certeza. Há, entretanto, razões para que seja uma
experiência transcendente o critério final de decisão: primeiro, por
causa da transcendência, infinitude e complexidade próprias ao objeto
que se quer conhecer; depois, porque, no que se refere à certeza dos
homens sobre Ele mesmo, o próprio Pascal atesta que a intenção de Deus é
“confundir os que não O querem conhecer com toda a sinceridade” – motivo
pelo qual Deus permanece com um “que” de mistério, ao invés de se
mostrar ao mundo com maravilhas e milagres capazes de convencer
forçosamente aos mais incrédulos dos homens, preferindo aparecer ao que querem vê-LO. Assim sendo, a falta de
evidências incontestáveis ou de razões necessárias e universais não
compromete a verdade e solidez da fé, nem se torna uma razão suficiente
para a falta dela. A diferença é que a certeza se dá por outros meios - e
nem poderia ser de outra forma - e esse fato é ele mesmo atestado pela
razão, conforme o que foi dito acima. Não precisamos do aval da
intelectualidade para repousarmos seguros em Deus.
Entretanto, não sei se por uma “teimosia” minha, que insiste em
racionalizar as coisas, ou se por uma tendência apologética, acredito
que essa impossibilidade de fornecer razões necessárias aos mistérios e
ao divino não significa que devemos renunciar à tentativa de
justificação racional da fé. Tampouco significa admitir que, por sua
não-inteligibilidade, a fé encerra contradições e absurdos lógicos. Essa
confusão, no fundo, decorre de se ignorar uma distinção que Leibniz
traça com grande lucidez entre aquilo que está para além da razão e aquilo que é contrário
a ela. Se opondo a céticos como Bayle e Montaigne, que acreditavam que
defender a fé seria absurda presunção, pois exigiria dar a razão do
inexplicável, responde o filósofo que podemos sim defender a fé, não
mostrando que suas proposições decorrem necessariamente de hipóteses que sabemos serem verdadeiras, mas sim ao se mostrar que os enunciados da fé são possíveis, ou seja, que não escondem contradições e impossibilidades lógicas. Assim sendo, o caso é que a fé cristã está para além da razão, mas jamais é contrária a ela. Ouso assim dizer que é possível defendê-la por meios racionais!
Um princípio lógico básico afirma que a negação de uma sentença do tipo 'A implica B' não é
a sentença 'A implica (não-B)', e sim 'A não-implica B'! (Assim como,
p. ex., para negarmos que 'Se x é um homem, então x é assassino' não
devemos provar que 'Se x é um homem, então x nunca é assassino': basta
mostrarmos que pelo menos algum homem x não o é: aqui importa-nos
destruir não a tese, mas o vínculo de necessidade
dela em relação à sua hipótese). Assim sendo, se uma objeção à fé é
feita sob a forma 'A implica B', em que A é uma afirmação inequívoca e
da qual não se pode duvidar, e B é uma sentença totalmente incompatível
com a fé, não precisamos provar que “não-B” é verdade, e sim mostrar que
não é necessariamente verdade que, se A é verdade, B o é.
Desta forma, fica dissolvida a objeção de meu amigo Gibran, segundo a
qual a posição cristã é irracional, supostamente “se refugiando” em
razões ocultas de Deus para justificar sentenças e atos irracionais.
Pois logicamente falando, para defender a cosmovisão cristã, não é
exigido que explicitemos um argumento em que as asserções que defendemos
decorram necessariamente de proposições universalmente válidas, e sim que mostremos que as objeções feitas à fé é que não são necessárias, antes são meramente aparentes;
ou seja, basta que mostremos que da fé bíblica não decorrem afirmações
obviamente falsas, nem que há contradições entre suas afirmações –
embora ela inclua mistérios. (Por isso, acredito que diante da pretensa
"obviedade" da falsidade ou absurdo de algumas asserções cristãs, o que
realmente deveria ser feito é explicitar qual é a razão pela qual ela são tão falsas ou absurdas assim).
Tampouco fica um cheiro de “derrota” no ar, como se propuséssemos uma
versão “fraca” de cosmovisão racional: pois, olhando ao redor com
honestidade e imparcialmente, qual de nós é capaz de oferecer tal
sustentação racional, explicitando razões suficientes para o mistério do
Ser e da vida, qualquer que seja
a visão de mundo defendida? Talvez estejam exigindo de nós algo que
eles mesmos não podem fazer – seguindo um paradigma de racionalidade tão
elevado que, confesso, não podemos satisfazer... mas tampouco eles
próprios o podem. (Exceto se ficarem tão restritos nas hipóteses, para
prevenirem-se de objeções, que pouco são capazes de explicar: evita-se o
risco evitando-se igualmente a possibilidade de ganho).
Até onde sei, existem três formas de se invalidar uma teoria. A primeira, mostrando que uma (ou mais) das hipóteses de que depende é (são) falsa(s). A segunda,
mostrando a inconsistência de tais hipóteses, ou seja, verificando-se
que a assunção simultânea delas leva a conclusões contraditórias. (Aqui,
não se está interessado na validade “local” das premissas, ou em seu
valor intrínseco de verdade: o que importa saber é a coexistência lógica delas, ou seja, se a assunção de todas elas é capaz de produzir afirmações incompatíveis). A terceira,
mostrando que da teoria se produzem consequências absurdas ou
totalmente contrárias à evidências certas e verdades conhecidas. As
objeções feitas devem ser encaradas segundo essas categorias, para que
se possa tratá-las conforme o método que lhes é próprio – se aqui
queremos falar com objetividade e rigor. Também, embora por sua força
comovente seja difícil a eles resistir, deixemos de lado os aspectos
emotivos que o tema inevitavelmente traz – especialmente se somos nós
que estamos passando pelo “vale escuro” do sofrimento. Por fim,
definamos bem os termos e entendamos bem o que queremos dizer com cada
palavra, evitando os “ídolos do foro”, que são as imprecisões ou
ambiguidades linguísticas.
Uma objeção feita, se entendi bem, é que a cosmovisão cristã entra em
contradição ao condenar, por um lado, a vingança e o desrespeito à vida,
e por outro, ao acreditar que Deus tenha o direito de condenar um
pecador ao sofrimento em recompensa aos seus pecados ou ter realizado
justiça por meio de seu povo. Mas precisamos ter cuidado aqui. Primeiro,
porque nunca se deve partir daquilo que se quer mostrar. Entretanto, ao apelar para a força inerente de expressões como
“tão absurda quanto a matança de indivíduos” ou como “atrocidades que
assim não são vistas apenas por estarem supostamente justificadas”, ou
ainda “desvalorizando a vida, enterrando o indivíduo, matando os
sentimentos e sepultando nossa própria humanidade”, parece-me
que é justamente isso que nosso amigo Gibran está fazendo – pois ao
qualificar dessa forma a ação divina em contraste com o princípio da
não-vingança ou violência, está já assumindo a priori que aquilo que alega ser um ato de injustiça da parte de Deus, de fato, o é
– sem ter antes definido o que vem a ser o valor da vida, o que vem a
ser a justiça divina e como isso implica que a ação divina não faz
justiça ao valor do indivíduo.
Além disso, se a acusação que nosso colega faz é de contradição, ela recai na segunda categoria, o que exige que, no mesmo sentido dos termos, e sob a luz de todas as hipóteses cristãs, aquilo que se chama vingança ou violência na perspectiva humana é o mesmo que
se chama “justiça” na perspectiva divina. Mas essa alegação, ao meu ver, não se
sustenta. Primeiro, porque a natureza da ação humana e seus efeitos não
são os mesmos daqueles
da ação divina. Por quê? Pois (i) a ação humana é incapaz de produzir
justiça, seja porque somos incapazes de saber o que é devido a cada um
por suas más ações, seja porque acaba por gerar mais violência, sem
fazer justiça e sem “resolver o problema” – ao contrário da ação divina,
que (estamos supondo) ser justa, onisciente e eficiente; (ii) no caso
da ação humana, temos um ser injusto querendo fazer justiça a outro
injusto – ao contrário da ação divina, em que é um Ser santo fazendo
justiça a um ser injusto; (iii) a ação humana tem por essência o desejo
de retribuir o mal sofrido, querendo que o outro “sinta o que eu senti”,
sem levar em conta a paciência e a benevolência – ao contrário da ação
divina, em que um Ser inalterável pelas ofensas tem por única finalidade o fazer justiça em relação ao que o outro
merece, sem deixar de dar inúmeras chances de arrependimento, ao invés
de fulminar o pecador em seu primeiro ato injusto. É verdade que essa
paciência não se dá ad eternum,
pois isso seria postergar indefinidamente a justiça sem nunca
realizá-la. Mas quem disse que o amor, a misericórdia e o respeito à
vida da parte de Deus implicam uma eterna impunidade, em que fazemos o
que queremos sem quaisquer punições? Isso seria partir de uma hipótese contrária
a cristã – a saber, a da inseparabilidade da bondade e da justiça
divinas –, o que vai contra o método que deve ser usado quando se trata
de uma acusação de inconsistência – que é o caso aqui. Além do que, o argumento em questão considera a questão da punição divina isoladamente – o que até mesmo eu consideraria um ato tirano ou vingativo da parte de Deus, se separado do fato de que o próprio Deus sofreu, sem ter culpa alguma, a punição que era nossa, tamanho era seu desejo de não nos punir. À luz dessas duas hipóteses, a ação divina pode parecer tudo, menos vingança ou crueldade. Assim sendo, a
inconsistência alegada é, na verdade, um mal-entendido decorrente da ambiguidade
no uso dos termos justiça/vingança, que só tem força retórica, mas não
lógica.
Uma segunda forma como poderíamos entender essa objeção seria colocá-la
na terceira categoria, reivindicando que, ao pensar em um Deus que pune
gravemente um pecador, estaríamos indo contra uma ideia geral e
universal de “valor intrínseco da vida” ou de “liberdade de expressão da
singularidade do homem”. Mas aqui surgem novos problemas. O primeiro é
que não se pode dizer, ao mesmo tempo,
que Deus valoriza a vida que criou sem aceitar necessária e
simultaneamente que ele é justo ao punir os atos maus que são cometidos
contra ela. Pois se aceitamos que a vida é preciosíssima
em sua singularidade, devemos aceitar igualmente que agir contra ela
constitui-se atrocidade indesculpável; ao passo que, se dizemos que Deus
é injusto ao punir aquilo que se faz contra o ser individual,
precisamos necessariamente assumir que as más ações feitas contra ele
não são tão graves assim, o que nos leva, de fato, ao cúmulo da
desvalorização da vida. (Até podemos discutir futuramente se a vida é
valiosa ou não, ou se Deus é justo ou não ao punir os crimes feitos
contra a vida; agora assumir ambas as coisas ao mesmo tempo – o valor
inestimável da vida e a injustiça de Deus ao punir –, isso não é possível, pelo menos se quisermos evitar a contradição.)
Além disso, é justamente a singularidade e o valor da vida que fazem
com que o mau uso dela por parte do próprio indivíduo seja algo tão
grave. Isso aprendi com minhas rasas e breves leituras de Kierkegaard: a
gravidade do pecado está justamente em ser este um ato de um “eu”
frente a Deus, ato que é mau na proporção da grandeza da natureza de indivíduo, dada pelo próprio Deus para que a usemos livremente – porém não num sentido absoluto da liberdade, e sim dentro de Sua vontade. Será que além de seu valor inalienável, o indivíduo não possuiria também um valor moral, dado em função do modo como vive sua vida?
O cristianismo aceita, sim, a não-arbitrariedade
dos valores de justiça, fundados na natureza divina e válidos
universalmente e sob uma “forma unificada, claro, que valha para homens e
Deus”. Porém não podemos nos esquecer de que a igualdade dos valores
não implica necessariamente na igualdade dos procedimentos: segundo
iguais valores, dois seres diferentes podem agir de forma diferente,
seja pela diferença de situações, seja por situarem-se numa relação
diferente entre si, ou mesmo pela natureza ou potência do ser que age.
Em outras palavras, a uniformidade de valores se torna heterogênea
diante da diversidade dos seres, o que faz com que não seja verdade que
há “um peso (assassinato) e duas medidas (errado o homem se vingar, mas
prerrogativo que Deus faça uma pretensa justiça.)” A forma como valores universais se dão pode mudar em relação à natureza do agente e do paciente – no caso, de Deus e dos homens – sem perderem seu caráter de universalidade.
Sobre o sacrifício de Cristo, seu papel, significado e modo como repara
nossa culpa e condição de pecado, prefiro recomendar a leitura dos
capítulos 3 a 5 do livro II da obra de C. S. Lewis, “Cristianismo Puro e Simples”, que coloca o tema de modo muito mais claro e preciso do que eu poderia fazer. Só queria comentar que o fato de que o sacrifício de Cristo foi “revertido” pela ressurreição, e portanto não perdurou eternamente, não torna-o insuficiente
para redimir um castigo eterno, como se este e aquele fossem
“incomensuráveis”. Acredito que a grandeza, a sublimidade e a santidade
de Cristo sejam tamanhas (supondo, é claro, sua divindade, pois estamos tomando todas
as hipóteses cristãs) que mesmo um intervalo de tempo finito e limitado
que ele tenha vivido seja “equivalente” a uma porção infinita de tempo
de tormento que o pecador viveria – tal como existem em matemática
funções que são capazes de percorrer toda a reta real partindo de um
intervalo finito da reta. A questão é a relação de equivalência
entre os tempos divino e humano: o problema em questão só existe se os
pensarmos de igual para igual, o que erra ao desconsiderar a diferença
entre as naturezas divina e humana.
Espero que, apesar da prolixidade, minha opinião tenha trazido alguma
luz à discussão. Um feliz ano novo e um abraço a todos!