Quando estou reunido com algum
grupo de adultos, sempre lamento quando o assunto muda subitamente
para o crime sórdido sobre o qual algum deles lia no jornal. As
expressões de todos mudam: os rostos se contorcem, alguns lamentam o
excesso de brandura das penas brasileiras e, às vezes, um mais ousado sugere
punições com descrições meticulosas e brutais. A cena é comum.
Comum e antiga. Quando presencio os exemplos mais exaltados, com
xingamentos e golpes de desabafo na mobília, fico com a impressão
de que a única diferença entre aquele episódio e um apedrejamento
são as pedras. O jornal sensacionalista é o apedrejamento do século
XXI. Não é um fenômeno humano raro, podemos encontrar paralelos em
quase todas as sociedades. Na Grécia Antiga, em tempos difíceis, de
doença ou fome, os sacerdotes escolhiam um pária (chamado de
pharmakós) para ser excluído da cidade¹. Na Idade Média,
haviam decapitações em público e um tipo particular ficou famoso
durante a Revolução Francesa, a guilhotina. A maioria dessas
execuções era acompanhada por uma multidão que esbravejava contra
os sentenciados.
Nos tempos modernos, quem cumpre essa função é principalmente o
telejornal sensacionalista. Acredito que um dos motivos é uma
espécie de gosto literário: os crimes escolhidos pela mídia e pela
audiência se desenrolam como num romance policial, os
telespectadores aguardam por novas pistas e evidências que
incriminem o antagonista e vindiquem a vítima. Mas não acho que
esse seja o maior motivo.
A causa principal me parece ser aquela que Contardo Calligaris
expôs num artigo publicado na Folha há alguns anos.² Ele diz que o
que faz as pessoas se envolverem nesse tipo de comportamento é a
necessidade de se diferenciar: os alemães na Noite de Cristal
queriam afirmar que não eram judeus, os racistas que linchavam
negros nos Estados Unidos queriam reafirmar sua separação da
população de ascendência africana, o povo da Oceania participava
dos Dois Minutos de Ódio para assegurar-se de que não tinha
sentimentos contrários ao Partido como aqueles declarados pelo rosto
projetado na tela.
Porém, pode parecer inoportuno tratar de um tema desses num blog
cristão, afinal, muitas dessas demonstrações de ódio foram
promovidas por cristãos ao longo dos séculos – o arquidiácono do
Corcunda de Notre-Dame vem à mente. Não acho que seja o caso.
Primeiro porque tomar parte nessas práticas, não importa como a
pessoa se auto-denomine, vai contra os próprios ensinamentos de
Cristo. Jesus é um dos mais famosos opositores desse comportamento,
Ele colocou a frase “quem nunca pecou que atire a primeira pedra”
na língua popular. Além disso, foi veemente reformador de outra
expressão comum em seu tempo, “olho por olho, dente por dente”,
Ele dizia que se alguém nos batesse no rosto, devíamos
oferecer-lhes o outro lado, não porque Jesus ignorava a justiça
mas porque Ele enfatizava a humildade e a misericórdia, Sua doutrina
ensina que se reconhecermos como nós mesmos somos ruins, tendemos a
ver a falha alheia não com olhos de condenação mas de compaixão.³
Acredito que seja esse o principal defeito do sensacionalismo de
casos policiais. G. K. Chesterton diz que uma das frases mais famosas
de Thomas Carlyle era que os homens eram, na maior parte, tolos, ele
diz que “o Cristianismo, com um realismo mais seguro e reverencial,
diz que todos são tolos”⁴. Não adianta insultar os vícios
dos criminosos da tevê com impropérios analgésicos. Apontamos a
falha dele para dizermos para nós mesmos que somos diferentes, que
não falhamos, acusamos para nos sentirmos absolvidos. Proponho um
exercício diário diferente: ao invés de negar a nossa
falibilidade, devemos aceitar essa verdade, ao invés de desviarmos
dos nossos defeitos todos os dias, devíamos corajosamente os
reconhecer. C. S. Lewis diz que “se você procurar a verdade,
pode encontrar consolo no fim: se procurar consolo você não terá
nem a verdade nem o consolo – apenas bajulação e esperança vazia
e, no fim, desespero.”
1: http://global.britannica.com/EBchecked/topic/685818/pharmakos
2: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2404200826.htm
3: Ver Mateus 18:21-35
4: Grifo meu.