sábado, 15 de junho de 2013

Razão e Sensibilidade: uma breve opinião sobre as manifestações em São Paulo

Não é só por R$0,20. É muito mais que isso. É um desejo psicossomático incontornável de lutar contra qualquer coisa. Esta é uma fala pessoal e autoral, pela qual não empenho a palavra do blog. 

Quando a PM avançou sobre a USP em 2009 eu me fiz presente no campus. Participei da assembleia geral, em meio às barricadas da Av. Professor Luciano Gualberto, que definiu que o mundo seria um lugar melhor sem a Polícia Militar. Ali eu me convenci de uma desconfiança nutrida há algum tempo: o movimento estudantil brasileiro é uma ode à irracionalidade humana. Uma comissão de estudantes da Faculdade de Economia (FEA), do Instituto de Matemática (IME) e da Politécnica definiu que levariam testemunhos aos seus respectivos institutos, convidando os estudantes aos protestos. Tudo muito racional e sensato. No instante seguinte o microfone ecoa os berros animalescos de uma criatura que exigia a invasão imediata das sobreditas faculdades e a instalação de barricadas intransponíveis. Os estudantes transbordaram de êxtase. Ingênuo e atordoado, reivindiquei a voz e denunciei o desatino contraproducente daquele brado e daquela atitude. Ouvi um silêncio desconfortável e o ensaio de algumas vaias.

Então eu soube: o movimento estudantil e seus adeptos são muito mais sensíveis do que racionais. Estão sempre dispostos a se comover com uma fala belicosa em nome de um suposto bem, sempre ansiosos por aderir a uma utopia integralmente impraticável, factível somente nos sonhos cardíacos dos manifestantes. Não importa a ordem e a racionalidade de uma manifestação. A depender dos partidos e órgãos políticos (PSTU, PSOL, PCO, CUT, UNE etc.) que controlam do início ao fim a pauta e o desenrolar dessas assembleias, o que importa é promover a luta social. São movimentos de luta. São partidos de luta. E a luta não é pacífica, nem nunca foi. É por isso que circulam imagens pelo facebook ironizando o repúdio ao vandalismo e à desordem. Afinal, a Revolução Francesa não zelou pela ordem e pelo patrimônio. 1968 tampouco. A tradução mais literal, que a esquizofrenia revolucionária não tem coragem de assumir, é que o vandalismo é legitimado e a desordem é justificada se o bem maior for promovido. Tudo em nome da revolução.



É muito mais que R$0,20. Trata-se da revolução social. Como disse um cartaz, “Desculpe o transtorno, estamos mudando o país”. Nada mais fácil que mover as sensibilidades cidadãs dessa maneira. É assim que uma manifestação engrossa suas fileiras. Protestam, são reprimidos, se vitimizam, apelam aos nervos dos cidadãos, e a marcha se avoluma. Dos poucos milhares do movimento inicial à centena de milhar que promete entupir o Largo da Batata na segunda-feira, há muita sensibilidade e uma racionalidade rarefeita. O magnetismo do movimento não é a causa boa, justa, razoável e transparente da melhoria do transporte público. É o desejo de mobilização, é a catarse coletiva, é o orgasmo psicológico que a ânsia de transformar o país promove. Os R$0,20 já não são mais nada perto da oportunidade inestimável de dizer “eu estava lá, quando tudo se fez novo”. Tamanha é a necessidade patológica de lutar que passaram a acusar as forças militares de atitudes ditatoriais. Mal se cabem de inveja das gerações que realmente enfrentaram os anos de chumbo. O desejo de reeditar aquela luta mobiliza infinitamente mais do que os 20 centavos. 

Assim, fique sepultado o mito do diálogo. O movimento não quer diálogo, e nunca quis. Não se dialoga com palavras de ordem que têm, todas, ponto final ou de exclamação. Não se dialoga empunhando bandeiras vermelhas. Não se dialoga no asfalto na Av. Paulista. ‘Diálogo’, no paradigma semântico dos protestos, significa acato incondicional às demandas do movimento. Não há qualquer possibilidade do diálogo se encerrar com o esclarecimento da inviabilidade matemática da impugnação do aumento. O único desfecho possível de um diálogo é aquele em que a palavra final do governo deve ser “pois não, senhores”. E qualquer manifestante que diga o contrário disso é um desavergonhado, no rigor da palavra, pois se jogasse com a possibilidade racional da negativa, nem estaria na rua. Mas desavergonhado é uma palavra demasiadamente forte à sensibilidade revolucionária.

A coisa tende a piorar. Segunda-feira me parece o Dia D. A promessa é de mais de cem mil em Pinheiros. Unidos para que? Na melhor das hipóteses, para gritar, bem alto, que “R$3,20 é um assalto”. Seria muito pedir que essas cem mil pessoas oferecessem alguma solução alternativa ao aumento da tarifa? Digo soluções racionais, não um devaneio onírico que sustenta a nulificação das taxas (com prejuízo de quem trabalha mais e ganha mais). É evidente que o idilismo da proposta movimenta milhares, mas a racionalidade de sua inexequibilidade só consegue acumular disfemismos. Na prática, esse oceano de pessoas vai fazer uma só coisa: gritar que a tarifa está cara. Sem propostas, sem soluções, sem alternativas reais e exequíveis. Isso é problema do governo. O estado que resolva. Como recém-nascidos que choram pelo leite, independente da robustez da mãe, assim se exige uma solução do estado sem qualquer consideração por sua saúde. 

Mas o estado brasileiro está anêmico. Isso porque o estado, sinto dizer, somos nós. A trivialidade entra em ação: dinheiro não se planta, não se colhe e não cai do céu. Diminuir tarifas é aumentar impostos. O prefeito Fernando Haddad informou que o aumento abaixo da inflação acumulada de dois anos acarretou um subsídio de 600 mi de reais aos cofres públicos. “Cofres públicos” é uma alusão eufemística ao nosso bolso, e não às gavetas lacradas do Banco Central. Manifestações em que o bramido é a redução de tarifas com ônus para “o estado” não passam de doses tóxicas automedicadas em um doente moribundo.  Bem vindos ao estado brasileiro assistencialista: obeso, inepto, deficiente, corrupto, canhestro, desjeitoso, inábil, estavanado e desastrado. Contribuir para a morbidez desse governo não alivia em nada a austeridade da vida no país, e sim o contrário. 


Ao que tudo indica, um grupo não foi rendido pela sensibilidade dos movimentos paulistanos, e optou pela racionalidade de soluções alternativas. Organizarão um protesto paralelo, cujo objetivo é conscientizar a população de outros mundos possíveis onde o transporte público poderia ter um preço justo e uma qualidade digna. Estarei lá. Recuso-me à vitimização do Largo da Batata, sublinho a conscientização do vão do Masp. Enquanto segunda-feira não chega, estarei em oração para que este movimento, movido pela razão, não se deteriore na bílis e no mimo da sensibilidade. 

Post Scriptum

Voltei para compartilhar o trecho de uma entrevista de Roger Scruton que diagnostica com precisão o que penso sobre os manifestos paulistas ocorridos até agora.

APESAR DO COLAPSO DO COMUNISMO E DE OUTRAS TRAGÉDIAS SEMELHANTES, AS PESSOAS CONTINUAM AGARRADAS A CAUSAS UTÓPICAS. PORQUÊ?

SCRUTON - O pensamento utópico sobrevive porque não se trata realmente de uma ideia, mas de um substituto de uma ideia, algo que serve de alívio para a difícil – e geralmente depressiva – tarefa de ver as coisas como elas são realmente. É uma forma de vício, um curto-circuito que afasta os indivíduos da razão e do questionamento racional e efetivo. O pensamento utópico remete-nos diretamente para o objectivo, passando por cima da viabilidade do projeto. É fácil digeri-lo e incorporar o seu optimismo mal-intencionado e sem fundamento. O problema vem depois, quando a utopia termina em fiasco.

Um comentário:

  1. "(...)o movimento estudantil brasileiro é uma ode à irracionalidade humana." É exatamente isso. Aqui em Teresina, o movimento estudantil classificou as manifestações de "passeatas", já que não teve quebra-quebra. Vi muitos relatos no Face de pessoas que diziam-se decepcionadas porque "a passeata não incomodou ninguém". Eles desconsideraram que o serviço de ônibus da capital foi completamente parado a partir das 18:00 horas (como se isso não fosse incômodo). Eu vi muita gente voltando para casa a pé.
    Alguns trabalhadores reclamaram que só queriam voltar para casa, mas eles foram automaticamente classificados de "alienados" nas redes sociais, como se eles não tivessem o direito de só querer voltar pra casa...
    O meu medo é que essa onda de manifs nos leve a um estatismo mais sério do que o que vivemos hoje.

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