"Remember, remember, the 5th of November,
Gunpowder, treason and plot.
I see no reason why gunpowder, treason
Should ever be forgot"
Essa é a cantilena que tomou a boca do povo no dia 5 de novembro de 1605, nas cercanias de Londres, Inglaterra. O propósito da cantiga era prestar homenagens de longa vida ao rei, que havia acabado de livrar-se de um assassinato imediato. Hoje, 5 de novembro de 2012, o facebook foi inundado por esses mesmos versos, mas carregando o sentido de luta contra o poder instituído. Como isso é possível?
Acredito que a maioria dos leitores já tenham assistido ao filme V de Vingança (V for Vendetta. Direção: James McTeigue. Reino Unido, Warner Bros. Picture, 2005). E se me engano quanto a isso, acredito que, daqueles que efetivamente o assistiram, a esmagadora maioria o considera um excelente filme. No mínimo estimulante. Mas será que a maioria dos leitores conhece o pano de fundo histórico que existe por trás do filme? Voltemos brevemente ao século XVII, para entendermos do que realmente ele trata.
Chega ao fim um reinado de 45 anos. Elizabeth I, a Rainha Virgem, expira no dia 24 de março de 1603. Poupemo-nos da alegação de virgindade. Fato é que ela não foi casada, nem deixou herdeiros. A coroa, pela lógica hereditária, é pleiteada pelos parentes mais próximos. Quem triunfa na disputa é Jaime VI, o sábio imbecil rei da Escócia. Ele agora seria, cumulativamente, Jaime I da Inglaterra. Como conseguira isso? Flertando com o apoio político de católicos ingleses. Sua esposa, Anne da Dinamarca, uma católica, envia uma petição ao papa em apoio ao entronamento de Jaime, com a promessa de resgatar a Inglaterra da trevas protestantes de volta para a luz resplandecente do catolicismo.
Jaime toma posse. Como retribui aos católicos? Os detalhes são tantos que me forçam a resumir: com uma considerável perseguição religiosa. Intolerância, sem dúvida. A resposta católica? O papa convoca seus debatedores profissionais, os jesuítas, para escreverem tratados legitimando o que foi chamado de tiranicídio, ou seja, o direito legítimo de assassinar um tirano que assume o poder. Ao mesmo tempo, um grupo de católicos ingleses inaugura a Conspiração da Pólvora (Gunpowder Plot), cujo modesto objetivo era explodir o Parlamento inglês na primeira sessão de 1605, a partir de uma sala repleta de pólvora logo abaixo do plenário. O plano foi descoberto de última hora. Conspiradores presos e enforcados. Alguns padres tiveram o mesmo destino, com destaque todo especial para os jesuítas. Mas a figura central, nem tão central na época, foi Guy Fawkes, conhecido desde então como "O Grande Conspirador". Morto, ele também.
Dito isto, podemos começar a pensar. Quem é V?
Ele não é Guy Fawkes, como já salientou o diretor do filme. Ele usa uma máscara do Guy Fawkes. Teria uma admiração pelo conspirador, notadamente enquanto símbolo da resistência de uma minoria oprimida. Há indícios no filme de que ele seja católico e esteja tentando resgatar aquele frustrado plano, de 1605, nos idos de 2030. Daí a Vingança. Historicamente, a vingança seria contra a hipocrisia de Jaime I e contra a perseguição irrestrita aos católicos, que evidentemente aumentou após o fracasso do plano.
Mas o que realmente faz pensar é o porquê do fascínio que o filme exerce sobre as pessoas. Ele é recebido como um retrato idealizado do poder do povo. São nossos governantes que devem nos temer, não o inverso. Um quê de Maquiavel às avessas. O filme é saudado como a única solução possível para o abuso de poder de autoridades auto interessadas, isto é, uma tirania. Em miúdos, é um guardião da democracia.
Democracia. Palavra usada ao longo de todo o século XX como legitimadora de absurdos. Não estou falando das guerras encetadas pelos EUA. A esquerda também se pretende democrata. Democrata ao extremo, aliás, buscando, no mais das vezes, a anarquia. O filme trata da busca pela anarquia ante um regime despótico. O diretor nos assegurou essa intenção. A questão que se coloca: o que é, no próprio filme, legitimado em nome da democracia? O que é feito e bem recebido em nome de uma nova ordem social?
A resposta: morte. As mortes que V inflige aos oficiais do governo são mortes aplaudidas. A tortura de Evey é recebida como uma libertação do medo. Um mundo onde não há respeito à vida é combatido com um idêntico desrespeito aos homens. A atitude revolucionária de passar por cima de vidas em nome de uma reforma política é aceita como um refrigério. Como disse certa vez um 'companheiro', professor universitário, "a história não avança sem atos de violência".
Isso é o enterro do indivíduo. É a morte dos sentimentos. O sepultamento da humanidade. Perde-se totalmente o valor do respeito à vida. A vida é secundária diante da guerra política. O que importa não é que indivíduos - ignóbeis e tirânicos, é verdade - estejam sendo mortos. O que importa é que a revolução seja assegurada, custe quantas vidas custar. Esse é o pensamento que levou, no mínimo, 20 milhões às covas coletivas do stalinismo. A revolução precisa ser garantida. As vidas são um empecilho. Palmas.
O que poucos atentam é que o filme não é D, de Democracia. É V, de Vingança! O que se promove enquanto virtude, o que se coloca como desiderato, como alvo primeiro, é a Vingança, não a democracia. O que move o protagonista - e todos aqueles que o aplaudem - é o mais vil desejo de vingança. E isso tem encantado a plateia. O sangue, o conflito, a morte. Tudo. Tudo em nome de um novo governo.
É essa a mensagem que queremos deixar ao mundo? Que a vida e a integridade física são marginais em relação à estrutura política? Que a disputa por poder deve ser feita por meio das armas e do assassinato? Que é legítimo excluir a existência alheia, por pior que ela seja, em nome de uma nova ordem social?
Não é esse o mundo em que acredito. Não aceito o convite à desvalorização da vida e ao enaltecimento da política. Abomino que, em nome de uma tolerância, seja praticada a intolerância em relação à vida humana. O homem, imagem e semelhança de Deus, não pode ter seu valor nulificado. A morte de um homem é a morte de um ser criado à imagem e semelhança de Deus. Há, portanto, um quê de divinicídio no assassinato.
Não aceito a promoção da vingança como virtude capital da humanidade. Essa virtude eu dispenso de bom grado. Jamais esquecerei o 5 de novembro. Como um dia em que a intolerância e o desrespeito à vida prevaleceu - de ambas as partes, infelizmente.
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Deixo disponível aqui, para quem tiver interesse, um texto acadêmico que publiquei acerca das consequências da Conspiração de Pólvora de 1605 para o pensamento político moderno. Um texto modesto e de leitura não muito palatável. A partir da página 73.
Não aceito a promoção da vingança como virtude capital da humanidade. Essa virtude eu dispenso de bom grado. Jamais esquecerei o 5 de novembro. Como um dia em que a intolerância e o desrespeito à vida prevaleceu - de ambas as partes, infelizmente.
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Deixo disponível aqui, para quem tiver interesse, um texto acadêmico que publiquei acerca das consequências da Conspiração de Pólvora de 1605 para o pensamento político moderno. Um texto modesto e de leitura não muito palatável. A partir da página 73.
Fala, xará! Conversei com o Bruno hoje e ele me convidou a dar umas palavras do que eu penso em relação a esse filme aqui.
ResponderExcluirAchei interessante a reflexão a respeito da desvalorização da vida humana no contexto mundial hodierno. Inclusive, dentre os católicos, existe um conceito específico para essa realidade: "cultura de morte".
Contudo, tenho algumas discordâncias em relação ao filme e sua interpretação. Depois de tê-lo assistido mais ou menos umas dez vezes, concluo que ele é um pouco mais complexo do que se imagina. Para começar que o filme não apresenta o V perfeitamente como um herói. Acho inclusive que é o contrário: ele é o antiherói, e tem uma cena que creio que comprova isso. Após ter sido submetida a todas as torturas, Evey retorna ao esconderijo de V, onde eles conversam logo antes da tão esperada "revolução". Em determinado momento, V tenta justificar tudo quanto fez até o momento da seguinte forma: "O que eles fizeram comigo foi monstruoso!" A resposta de Evey vem na lata: "E eles criaram um monstro..." V não tem resposta em contrário. Ele é um monstro, tanto fisicamente quanto como pessoa humana. Na verdade o filme corre todo na corda bamba entre a resistência de V a um sistema extremamente opressor e sua Vendetta pessoal. E o que nós temos no final é que o povo acaba não sendo mobilizado por seus crimes: eles não ficam sabendo deles, pois são acobertados pelo governo. Eles são mobilizados primeiro por uma ação simbólica: a explosão de um prédio governamental sem quaisquer vítimas. Em seguida, por um discurso de V que chama à mobilização. Por fim, vão às ruas após uma menina ser friamente assassinada por um dos homens-dedo do governo. E o Parlamento explode no final.
Aqui destaco um ponto importante, tanto para a compreensão do filme quanto para o entendimento do porque tantas pessoas repetem o famoso "Remember remember..." Não há revolução aqui, pois revolução implica a transformação total de uma sociedade (por vias violentas ou não) para um novo sistema pré-concebido pelos revoltosos.
Quanto a isso, chamou-me a atenção um comentário por parte do professor Lincoln Secco em uma de suas aulas, quando questionei a respeito do movimento dos Indignados. Ele salientou o fato de que eles seguem o livro de um francês (cujo nome agora não me lembro) lançado recentemente e que se chama "Indignez-vous", traduzido recentemente para o português justamente como "Indignai-vos!". Esse livro, assim como o movimento dos Indignados em si, não possui proposta política. Ele se resume em uma apresentação de motivos para os povos se indignarem.
Podemos pensar nisso quanto ao filme também. Nem V, nem o povo que veste sua roupa ao final, apresentam qualquer proposta política. Aliás, o meu primeiro entendimento do filme foi o de que o que segue é justamente um retorno à ordem democrática pré-fascista. O que o filme deixa no final é um sentimento de que não há uma revolução por parte do povo no sentido estrito do termo, apenas uma legítima defesa contra a tirania extrema.
É claro que não nego que tudo isso possa ser distorcido por muitas pessoas. Não nego que existem muitos que possam enxergar na figura violenta e vingativa de V o ideal de herói revolucionário. Apenas não penso que seja tão generalizado o sentimento de que se deve partir para a violência extrema de modo a contestar e mesmo combater um sistema político opressor.
Por fim, só para sugerir uma futura discussão (uma vez que pretendo acompanhar as atividades do blog de vocês com atenção), gostaria de pensar o seguinte: é lícito o povo se revoltar contra um governo que restringe os direitos mais básicos da pessoa humana? Se sim, até que ponto pode ser levada essa revolta? Ela pode ser considerada uma revolução? E se não, por quê?
Acho que esse seria um tema interessante para um artigo.
Abraço!
Pedrinho, tudo certo? Valeu pelo comentário!
ResponderExcluirBom, a minha preocupação fundamental com o texto é menos o quadrinho ou o filme em si, e mais a recepção que ele recebe. É isso que quis expressar quando falei "do fascínio que o filme exerce sobre as pessoas. Ele é recebido como um retrato idealizado do poder do povo". Que na recepção o conceito original possa ser distorcido você também apontou no seu comentário. Mas sabemos que essa recepção é, talvez, mais importante do que a intenção do filme em si.
É possível que o V seja um anti-herói nos quadrinhos, e isso exigiria uma análise mais profunda. Mas eu não acho que o filme transmita essa ideia. Embora ele seja chamado de "monstro", e possa ter as vestes de um anti-herói, é ele, no final, quem levanta o povo contra a tirania, é ele o campeão da resistência. Acredito que o próprio tratamento cinematográfico faz dele um herói. Mas é um herói que tem sua monstruosidade legitimada, percebe? Ele é um monstro sim, mas, dadas as circunstâncias, isso é justificável. O que importa é que sua luta é legítima.
Agora, com relação à desqualificação da empreitada do V como "Revolução" ou não, eu tendo a discordar de você. Ele pode não ter uma cartilha de sociedade que ele deseja, mas quem disse que isso é necessário? Importa pouco se existe algo para colocar no lugar. No que diz respeito à história das ideias políticas, a palavra "Revolução" designa, até o século XVI, um retorno a uma situação originária, herança de um vocabulário astronômico. Assim, se a proposta do filme é um retorno à ordem pré-fascista, como você colocou, trata-se precisamente de uma revolução. É só a partir do XVII, com a Revolução Gloriosa, e, principalmente, após a Revolução Americana e Francesa, que o termo "Revolução" ganha o sentido de ruptura drástica. Inclusive, a alcunha de Revolução só pode ser postulada a posteriori, quando os fatos estão consumados, pois não há um plano elaborado a priori (a própria Revolução Gloriosa nunca foi chamada assim no século XVII). Nunca se colocou a existência de um projeto alternativo como requisito para chamar um levante político de revolução. Basta observar a Revolução Francesa, que constrói seus objetivos e constrói a si mesma sincronicamente, no calor dos acontecimentos. Não existe um projeto quando a Revolução tem início. A ideia de que sem um projeto não há revolução é refém do pensamento marxista. É Marx que, pela PRIMEIRA VEZ, projeta uma sociedade ideal e que requer uma revolução para entrar em vigor. É ele quem conecta esses dois conceitos. Não compartilho desse vocabulário, nem concordo com ele.
Quanto à sua pergunta final, eu a considero profundamente pertinente. E a minha resposta, pelo menos provisória, é a seguinte: um governo democrático não pode aceitar leis ou governantes não democráticos e que não respeitem os direitos mais básicos do homem. E acho que a luta armada é plenamente factível. O que me importa é, em estilo bem kantiano, o que move essa luta armada. Meu problema com o V é justamente a Vingança. Não considero a vingança, de maneira alguma, um valor digno para se lutar, porque a vingança sempre dará ocasião à vingança, e um ciclo perpétuo de vingança leva a um genocídio despropositado. Agora, resistência em nome da Democracia e da Liberdade, se conceitos bem definidos e entendidos, eu considero válido. V de Vingança jamais. R de Resistência, D de Democracia, L de Liberdade, possivelmente. Mas de novo, são apenas impressões iniciais, ainda não tenho ideias fechadas a respeito.
Obrigado pela leitura e comentário!
Abraços!
Opa! Belos comentários. Nada como um blog povoado por pessoas inteligentes, a quem Deus resolveu usar de suas mães para chamar-lhes "Pedro", em tributo às fundações da Igreja...rs
ExcluirSobre Marx e a Revolução, concordo, é o filósofo alemão que associa a leitura de Revolução a uma sociedade planejada e mecanicamente estabelecida por leis sociais. Daí vem, inclusive, sua auto-proclamação como socialista "científico". Isso é certamente uma etapa nova no pensamento revolucionário, e provavelmente a mais trágica, pois sela o entendimento da sociedade como um laboratório, e os seres humanos como meros artífices de leis naturais/sociais. A partir disso, a revolução se torna uma experiência de engenharia social. As mortes e os crimes são obstáculos necessários para balancear a equação social.
Isso explica o genocídio em massa praticado pelo Estado, que chocará a todos no século XX, momento em que a ideologia revolucionária se casará com um momento singular da evolução tecnológica e proporcionará um dos maiores horrores que a humanidade já viu.
Mas a raiz do problema revolucionário não começa em Marx. Ela está presente já na Revolução Francesa, e antes também. É a ideia de uma transformação na sociedade colocada em prática por um sujeito (ou alguns) que se creem redentores sociais, iluminados homens sobre os quais repousa o advento da "sociedade justa". Assim, as pessoas depositam em um grupo revolucionário o poder para por em prática a utopia, e o fim último torna-se o único árbitro para que se julguem suas ações. O revolucionário mata, tortura, e se isenta desses pecados pela sua motivação, pela sentimentalização da política, pela defesa de suas intenções, sempre as mais puras! O revolucionário é sempre justo, e seu projeto, sua utopia, é o tribunal que legitima suas práticas.
Não à toa, pretenderei mostrar em uma postagem futura como a "sentimentalização" da política é típica dos revolucionários. Barack Obama convenceu os americanos a votarem nele novamente, mesmo com a economia indo de mal a pior nas suas mãos, pois suas motivações são as mais puras e justas, enquanto seu adversário é apenas um burguês que deseja se enriquecer e continuar a garantir seus interesses. O mesmo nós já vimos em nossos colegas revolucionários de faculdade: seus opositores – nós, muitas vezes – são sempre mal-intencionados. Nossa religião, nossa fé cristã, é só uma construção sócio-cultural que reflete nossos interesses podres. O revolucionário é um monopolista da justiça. Só assim ele se apregoa o direito e o poder de conduzir a luta da forma com o faz.
Sobre a validade da resistência armada, eu acho uma ótima ideia de discussão. Devemos empreendê-la assim que possível (a discussão, não a luta armada, haha). Toda a questão gira em torno de definir o que é legítima defesa – um princípio justo e legítimo ao cristão – e o que é mentalidade revolucionária; definir o que é proteção e sacrifício, e o que é, do outro lado, julgarmo-nos capazes de trazer justiça ao mundo com as nossas próprias mãos.
Abraços Brunôncius
Concordo em número, gênero e grau com o que o Bruno colocou. Também escrevi uma outra resposta, mas não sei se o meu texto foi, em que considerei a mesma coisa: a raiz do problema da "revolução" já pode ser encontrada na Revolução Francesa.
ExcluirFala, xará!
ResponderExcluirTendo a concordar mais com você quando diz que muita gente hoje faz uma idealização do V por inteiro (incluindo seus assassinatos). Uma dia desses coloquei para ouvir pelo Youtube a Abertura da Sinfonia sobre 1812 de Tchaikovsky, que é a música do filme. Tinha um comentário de um cara dizendo que o mundo precisava do V. Cerca de 110 pessoas curtiram o que ele disse. Isso é bem significativo, mostra que estamos em um ponto em que uma revolta que era em grande parte latente e expressada de boca em boca está se tornando cada vez mais pública.
Quanto à questão do V, eu concordo em um ponto e discordo em outro, dentro da minha interpretação do filme (também não li os quadrinhos). Como eu já disse, o filme corre entre a vingança pessoal dele e o movimento político que ele engatilha. Ele passa o filme inteiro como um antiherói, para ser claramente heroicizado ao final. Contudo, não creio que esta seja uma legitimação dos atos crueis dele durante um filme, mas algo que, pensando agora, é ainda mais preocupante: ele é heroicizado APESAR de tudo o que fez. O que o digo é o seguinte: o filme não diz: "pô, ele é um cara cruel e vingativo, mas isso é válido uma vez que ele luta contra um sistema opressivo", mas sim algo como: "ele é um cara cruel e vingativo que cometeu crimes bárbaros, mas e daí? O importante é que ele consegue libertar o povo no final". Não é um "os fins justificam os meios", mas sim um "os fins são mais importantes que os meios, e estes podem ser simplesmente esquecidos". Isso é de uma alienação tremenda, não só no planos das consciências como nas relações interpessoais.
Contudo, ainda assim, considero a mobilização do povo ao final muito interessante, e seria ainda mais, caso não houvesse a Vendetta do V por trás. Afinal, como já disse, o que os mobiliza não são os crimes do V, dos quais eles não tem conhecimento. Nós, tendo uma visão de fora e sabendo de tudo quanto V fez e de seus motivos, somos culpados se o inocentarmos, mas eles agem na inocência da revolta legítima (pegue o vídeo do discurso de V para Londres e verá que ele nunca cita uma vingança).
Já com relação à revolução, continuo discordando. Creio que o pensamento que nós temos de "revolução" como projeto político não é marxista, mas se encontra dentro do contexto já da Revolução Francesa. Reinhart Koselleck cita Robespierre dizendo que "metade do mundo foi revolucionado, e a outra metade ainda está por se revolucionar" (estou citando de cabeça, então as palavras podem ser outras). Até a Revolução Francesa, a ideia que se tinha "revolução" era como você bem apontou, o movimento cíclico de retorno, seguindo o modelo astronômico. Eventos como a Revolução Gloriosa, por exemplo e se bem me lembro (li esse texto do Koselleck na época que fazia iniciação com o István), eram conceituados como "guerras civis" ou "revoltas". Na verdade até hoje existe uma certa confusão terminológica a esse respeito, com muitas mobilizações recebendo rótulos de "revolução" sem possuírem um caráter revolucionário de fato (exemplos: "revolução" de 1932, ou os militares em 1964 chamando seu Golpe de "revolução" também). O que digo é o seguinte: toda revolução precisa de uma mobilização, mas nem toda mobilização é uma revolução. No caso da Revolução Francesa, ela só pode ser considerada como tal a partir do momento em que possui um projeto político transformador a ser imposto à sociedade, ou seja, quando visa impor ao rei a abdicação de parte considerável de seus direitos, seguindo depois para a destruição da monarquia em si, sem falar na Declaração dos Direitos do Homem.
Pedro, desculpe a demora, estou muito atribulado nesses dias. Vou só comentar brevemente o que penso.
ExcluirSe realmente for do jeito que você retrata, se ao invés de uma legitimação da monstruosidade existe uma negligência desta, então de fato a situação é ainda pior. Mas isso não deixa de me fazer pensar na semelhança entre essa situação e os esquerdistas de camiseta do Che. Parece que não se importam ou ignoram que ele tenha sido um sanguinário.
Essa ideia dá um significado bem diferente para pensarmos o filme. Entra em questão a alienação nas atitudes revolucionárias - ou revoltosas. Uma alienação que faz com que compactuem com verdadeiros monstros que agem de forma ilegítima e imoral. Eu vejo exatamente isso acontecendo nos movimentos marxistas.
Agora, com relação ao caráter revolucionário ou não da mobilização final. Isso pra mim é realmente de pouca importância, estou discutindo só por interesse. Não há, Pedro, e isso é muito evidente, nenhum PROJETO de Revolução Francesa. Não há cara, o que acontece é uma convocação do Parlamento, o terceiro estado exige melhores condições de pleito, isso é negado, e aí eles começam a se mobilizar sem ter a menor ideia do que vai acontecer. Nesse momento ninguém tinha imaginado que isso poderia acontecer, ninguém sabia como agir, ninguém havia pensado nessa possibilidade. Ninguém tinha PROJETADO nada. Não há projeto.
De repente a população lá de fora fica sabendo que o terceiro estado fez alguma coisa e começa a fazer pressão pra ter seus direitos ouvidos, pega em armas, toma a Bastilha no calor dos acontecimentos e marcha ao palácio. O terceiro estado, temeroso, fica horas a fio! escrevendo a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, tendo inúmeras versões, que pesavam palavra por palavra, com receio de como pudesse ser recebido. Ninguém sabia o que estaria escrito, ninguém sabia o que fazer com o populacho. É só DEPOIS disso que a literatura revolucionária ganha corpo. Não existe nenhum modelo revolucionário a ser seguido, as coisas vão acontecendo, Pedro. Não há projeto, não há mesmo.
É só com Marx que há projeto! O cara senta e escreve como deve ser a revolução, quem deve fazê-la, o que evitar, quais os riscos, etc etc.
Agora, eu nem estou discutindo se o que acontece no V é uma revolução ou não. Para isso seria necessário entrar em um debate conceitual. Estou discutindo apenas o seguinte: SE a Revolução Francesa é uma revolução, então as revoluções não têm que ter um projeto de antemão. Aliás, é Marx quem atribuiu um projeto passado (se isso é possível) à Revolução Francesa. Ninguém na época enxergava aquilo como a revolução da burguesia e o triunfo de um novo sistema de produção. Marx é que vai dizer que isso aconteceu.
Agora, é possível discutir se a Rev. Fra. foi mesmo uma revolução. Eu só não pago muito tributo ao conceito que Marx, Koselleck ou outros criaram de revolução, principalmente se forem de esquerda, porque aí eu tenho certeza que as chances de eu discordar são maiores.
Abraços!
O que vejo por parte do povo no "V de Vingança" é uma mobilização popular em legítima defesa, frente a um regime opressor violento (e isso fica claro pra mim quando o povo só se mobiliza após o assassinato da garotinha). Pode, sim, possuir um caráter revolucionário no sentido primeiro do termo, ou seja, um retorno à ordem democrática (embora isso também deva ser pensado com cuidado, uma vez que implicaria que após a nova ordem democrática, deveria se seguir necessariamente uma nova ditadura).
ResponderExcluirQuanto à sua resposta final, não tenho qualquer discordância a princípio. De fato, a vingança nunca pode ser encara como uma virtude humana, pois cai no fundamento de todo erro do homem que é o querer ser Deus quando não é. A vingança é monopólio de Deus, inacessível aos homens que não podem possuir um senso perfeitíssimo de justiça como o Dele.
Grande abraço e um ótimo domingo!
Apenas um comentário para falar dessa questão da Revolução Francesa:
ResponderExcluirNão é necessário um projeto científico de sociedade para haver uma revolução. Não é preciso ter um um sentido, um direcionamento claro e organizado. O que é necessário é que uma idéia de futuro, uma utopia, qualquer que seja, legitime a inversão dos valores e a luta por destruir e transformar um sistema ou uma ordem social, em uma situação em que o futuro legitima as práticas revolucionárias.
Não há como negar que isso foi exatamente a Rev. Francesa. Talvez, quando tenha começado, fosse uma bagunça, mas o espírito e a mentalidade já estavam ali, e como nós sabemos isso é produto de um mind-set construído por décadas e décadas de literatura iluminista. Acho que Chartier e Fouret exploraram bem essa questão, e o Jonathan Israel também: a Revolução foi principalmente um produto de idéias, e, em segundo lugar, da situação material deteriorada.
A convite do Bruno, fiquei de comentar o texto do Pedro Issa, mas demorei (e também me prolonguei) mais do que pretendia.
ResponderExcluirAlém do resuminho do contexto histórico da Conspiração da Pólvora (que eu ignorava), gostei muito da análise do sentimento geral evocado pelo filme: o prazer na violência em resposta à opressão, o convite à busca totalmente sem censura de um direito ou de simples compensações. Algo espinhoso mesmo, que pode indicar a fragilidade emocional da maioria, por motivos e circunstâncias muito diversos; a sensação de injustiça e de impotência contra agressões e opressões, apenas satisfatoriamente contornados com lâminas rápidas e compensados por gargantas abertas.
Mas, por força do habitual objeto de reflexões e debates meus, chamou-me mais a atenção que o apelo – contra a vingança, a violência, o homicídio e a nulificação do valor da vida humana – figurasse num blog “em defesa da Cosmovisão Cristã”. A contradição ganhava contorno a cada palavra que lia, simultaneamente substituindo palavras:
“(...) A questão que se coloca: o que é (na própria Bíblia?) legitimado em nome do Plano Divino? O que é feito e bem recebido em nome de uma nova ordem moral e/ou espiritual?
A resposta: morte. As mortes que Deus e seu povo infligem aos outros habitantes da Terra Prometida são aplaudidas. A tortura de Jesus é recebida como uma libertação do pecado e do medo (da morte, da condenação, do tormento eterno). Um mundo onde não há respeito à vida é combatido com um idêntico desrespeito aos homens. A atitude despótica de passar por cima de vidas em nome de uma reforma espiritual é aceita como um refrigério. (...)
Isso é o enterro do indivíduo. É a morte dos sentimentos. O sepultamento da humanidade. Perde-se totalmente o valor do respeito à vida. A vida é secundária diante da Vontade Divina. O que importa não é que indivíduos – ímpios e pervertidos, é verdade – estejam sendo mortos. O que importa é que a regeneração da Criação (o estabelecimento do povo de Deus, em algum grau; mas, sobretudo, a salvação através da tortura de Jesus) seja assegurada, custe quantas vidas custar. Esse é o pensamento que levou vários povos ao extermínio e ‘um rabino’ inocente à tortura, além de ‘bruxas’ e hereges. A renovação precisa ser garantida. As vidas são um empecilho. Palmas (ou aleluias, louvores, ‘Glória a Deus’).”
A contradição que aponto é evidente e do Cristianismo em geral; pois muitos poucos, talvez nisso mesmo não reconhecidos como cristãos, têm crenças que não mereçam essa crítica: a maioria crê nalguma espécie de tormento eterno aos “condenados”, excluídos do Plano de Salvação; e uma minoria crê na aniquilação, a meu ver, tão absurda quanto a matança de indivíduos – ignóbeis e tirânicos, é verdade – na perspectiva ateísta e materialista (com uma ressalva: dentro das limitações humanas, a violência pode ser o único recurso; por outro lado, a onipotência faculta melhores alternativas, ignoradas pelo Cristianismo).
Esperava que isso continuasse sem abordagem nos comentários, mas o outro Pedro [Piza] acabou se manifestando:
“De fato, a vingança nunca pode ser encara como uma virtude humana, pois cai no fundamento de todo erro do homem que é o querer ser Deus quando não é. A vingança é monopólio de Deus, inacessível aos homens que não podem possuir um senso perfeitíssimo de justiça como o Dele.”
É a defesa que vejo mais amiúde nos meus debates de boteco virtual. Talvez seja a única (não que isso lhe legitime): nós não podemos por sermos falhos, e Deus assim deseja, mas Ele pode, sendo Soberano e Perfeito, como Sua vontade. É Dele o “perfeitíssimo senso de justiça” para cometer atrocidades que assim não são vistas apenas por estarem supostamente justificadas.
(Continua...)
(Finalizando...)
ResponderExcluirPorém, pressionando meus pares de debate, a justificativa (justificação) da ótica divina nunca aparece sem ser reprovada pelo senso humano das coisas. O final é sempre o mesmo: mistério.
Há motivos justos para certas condutas de Deus? Como saber, se não se conhece nenhum motivo sólido? A declaração de fé (confiança plena e inabalável de que há, sim, bons motivos) é frequente. E inválida, pois, racionalmente, só podemos aceitar que algo é justificável se tivermos acesso às justificativas (não temos) e concordarmos sobre delas (não ocorre com as pretensas justificativas).
Alternativa é evitar a justificação dos atos e apenas aceitá-los por provirem de Deus, que é Soberano, que não precisa se explicar a nenhuma criatura (Rm9:20,21). Mas, por aí, não estaríamos também desvalorizando a vida, enterrando o indivíduo, matando os sentimentos e sepultando nossa própria humanidade? Como disse o Pedro Issa:
“O homem, imagem e semelhança de Deus, não pode ter seu valor nulificado. A morte de um homem é a morte de um ser criado à imagem e semelhança de Deus. Há, portanto, um quê de divinicídio no assassinato.”
Não haveria, na aniquilação irreversível de um danado, um quê de suicídio divino? Ou, na sua tortura eterna, um quê de “autossadomasoquismo” divino?
Um peso (assassinato) duas medidas (errado o homem se vingar, mas prerrogativo que Deus faça uma pretensa justiça, desproporcional e despropositada)? Não seria isso um niilismo “compensado” (orientado, norteado) e ocultado por simples teísmo?
Acho salutar que estejam dispostos a discutir definições:
“Toda a questão gira em torno de definir o que é legítima defesa – um princípio justo e legítimo ao cristão – e o que é mentalidade revolucionária; definir o que é proteção e sacrifício, e o que é, do outro lado, julgarmo-nos capazes de trazer justiça ao mundo com as nossas próprias mãos.”
Sugiro que se discutam o conceito, o propósito e os meios da Justiça. De forma unificada, claro, que valha para homens e Deus. A menos que haja bons motivos para tratá-los de maneira tão desigual.
Gibran Elias
Olá Gibran, tudo bem?
ExcluirFico muito feliz que você tenha tirado seu tempo para compartilhar de sua sagacidade conosco. Tão logo li seus comentários me pus a respondê-lo. Gostei muito da sua fala, embora eu, pessoalmente, dispensaria a paráfrase.
Seu contraponto é muito perspicaz. A morte é uma constante no Cristianismo, de diversas formas. Inclusive a solução da morte é um dos principais problemas que o Cristianismo procura resolver, e virar a mesa para nós nos dá uma oportunidade ímpar de expormos o que pensamos sobre ela. Mas deixo claro: talvez nem todos do blog compartilhem de meus raciocínios. Estamos entrando em um terreno teológico-filosófico áspero e delicado. E que não é meu principal foco de estudo, diga-se de passagem. Tenho algumas impressões iniciais e argumento em cima delas, mas não são questões fechadas para mim.
Sua análise é muito poderosa, sem dúvida. Falou-se tanto no respeito à vida ao passo que a Bíblia é uma narrativa fúnebre em vários aspectos e momentos. E então?
Eu havia escrito e pensado em muitas coisas, mas vou me restringir por ora a um só ponto: a ideia de morte dentro do Cristianismo.
A Bíblia não é um manual de pacificismo. A Bíblia não é um guia comportamental para que vivamos todos em paz e harmonia. Esse nunca foi o propósito de sua escrita, ao contrário do que pensam aqueles que insistem em enxergar uma 'funcionalidade' nas religiões, o que os força a cobrar do Cristianismo uma 'melhor convivência humanitária'. A Bíblia nos apresenta de forma nítida e explícita o funcionamento moral e espiritual do mundo, e implicitamente como todas as outras esferas naturais e humanas giram em torno dessas verdades. Não é uma descrição total da engenharia universal. Existem mistérios, como você colocou, e nós chegaremos a eles. O importante aqui é entender que a morte faz parte do complexo Cristianismo e do universo que ele retrata.
E é precisamente a exclusão e desconsideração de alguns elementos desse sistema que dá força e pujança ao seu argumento. Sua questão, se bem compreendi: os cristãos acreditam, sem qualquer motivo racional para fazê-lo, em um Deus que legitima, autoriza e exige mortes em nome de uma salvação restrita e do cumprimento de sua vontade moral e/ou espiritual. Dessa paisagem, fica-me a impressão de um Deus tirano que decide entre a vida e a morte de suas criaturas ao seu bel prazer, a despeito de sua ontologia e de sua individualidade, e os cristãos buscam legitimar essas ações confiando cegamente no apanágio da perfectibilidade sapiencial de Deus.
Se fosse tudo isso mesmo, estaríamos em maus lençóis em nossa crença. Mas eu acredito que você obliterou simplesmente a peça que dá todo sentido ao Cristianismo: o pecado. Você falou em pecado uma única vez em seu post, e foi uma utilização um tanto vaga. O pecado não é vago no Cristianismo, ele é um fundamento. Como fica a fotografia se inserirmos o pecado na história?
ExcluirDeus criou o homem. Um homem dotado de uma liberdade de escolha. Deus recomendou a esse homem um uso sábio dessa escolha. E o homem não o escutou. As cartas estavam na mesa. Deus disse claramente que o homem não deveria comer "da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você MORRERÁ" (Gn 2:17). Aqui entra a morte. A morte é uma consequência do pecado do homem, a morte é algo que não estava no mundo criado por Deus, mas que existe por uma ação volitiva do homem. Por meio de Adão, diz Paulo, o pecado entrou no mundo, e, junto do pecado, a morte. A vida não era finita, o homem a tolhiu. Por isso a promessa de Cristo é o resgate da vida eterna. É a solução para a morte e para o pecado do mundo.
Significa o que? Que o homem, conhecendo plenamente as consequências de sua ação, optou pelo pecado. Consequência? Morte. Paulo o expressa de forma espartana e sublime: "Pois o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rm 6:23).
O pecado faz de todos nós ímpios e perversos. Homens maus. Isso contrasta com um pressuposto não revelado do seu discurso de que o homem não tem nenhuma dívida pristina para com Deus, e que as ações de Deus são conclusivamente arbitrárias. Não é verdade. O homem tem um débito ENORME para com Deus. Qual débito? A vida. É por isso que Deus detém o monopólio da vida humana. Diante disso, qualquer morte infligida por Deus, independente da situação, assume outra natureza. Não mais um desrespeito à vida, um divinicídio, o exercício de uma tirania sanguinária. Antes, pura e simples justiça. O homem pecou, e o preço do pecado é a morte. E ele sabia disso. E foi em frente. É isso o que isenta a feição genocida de Deus. O sangue dos homens que é derramado não está, NUNCA, nas mãos de Deus, e sim na conta do homem.
Inversamente, cada vida preservada por Deus é a manifestação mais maravilhosa de seu amor e bondade. O próprio fato de estarmos aqui, vivos, é graça e misericórdia de Deus.
Mas então você falou de Jesus. E é aí que a coisa fica melhor. A morte de Jesus não é a morte de um homem em nome do pecado. A morte de Jesus é a morte de um DEUS pela garantia da VIDA ETERNA. A morte de Jesus é a resolução última da justiça de Deus, que exige o pagamento do pecado de toda a humanidade pela morte de toda a humanidade, e do amor de Deus, que não deseja que seus filhos sofram a morte e a condenação eterna. Como resolver isso? Ele mesmo se entrega, como homem, oferecendo um sacrifício perfeito, como Deus, no lugar de toda a humanidade. As palmas, os aleluias e as glórias pela morte de Cristo são um reconhecimento de um deus que preferiu morrer por nós do que nos matar. É um sacrifício. Um sacrifício santo, incrível e inestimável.
Perfeita a exposição do meu xará. Basta pensar no seguinte: Deus não é apenas uma ser pessoal e intelectivo superpoderoso que está em posição de dominar os homens e fazer deles o que bem quer. Ele é o próprio Princípio, a própria fonte de tudo quanto existe. Ele é o único do qual se pode dizer que É, sem princípio e nem fim. Ele simplesmente É, e por meio Dele nós recebemos a enorme graça de sermos também.
ExcluirEm suma, Deus é a própria Vida, não apenas vida corporal como espiritual também. Ele é a Vida em si. Quando o homem, por livre e espontânea vontade, desobedece a Deus, só pode encontrar morte.
Obrigado pelas respostas de vocês! Espero que a continuidade desse aspecto teológico-filosófico não seja indevida.
ExcluirPrimeiramente, deveríamos separar morte "morrida" (nossa condição de mortais) e morte "matada" (homicídio, morte extrinsecamente provocada ao homem). Podemos até discutir as causas (ou causadores) e meios da outorga da mortalidade, mas creio que nossos temas básicos sejam o "direito" de Provocar morte e o reflexo disso no valor que damos à vida.
Em segundo lugar, ousaria afirmar que a abordagem cristã do pecado (e, consequentemente, da virtude, da lei e da justiça) é que é vaga. Ou, no mínimo, bastante simplista e arbitrária.
Podem parecer perguntas bobas, em busca do porquê do porquê do porquê; mas, sem respostas objetivas e justificáveis, fortalece-se muito a impressão de arbitrariedade e até tirania:
1) Analisando uma escolha, quais os parâmetros de sabedoria e quais são as bases objetivas (não arbitrárias) deles?
2) Que relação intrínseca (não arbitrária) há entre o conhecimento e a morte? Ou entre o fruto em si e a morte? Ou entre a obediência e a morte?
3) Se Deus cria seres "livres" cuja permanência (continuidade existencial) depende de restrições à liberdade, será isso uma liberdade "verdadeira"?
Nessa última, dirijo-me mais a você, Pedro Piza, pela impressão que me passou de que "existimos por permissão Dele, então aceitemos quaisquer condições e imposições, já que o poder sobre nós é Dele". Does might make right?
Também percebo que igualar Deus à "própria Vida" borra a definição de ambos. À reflexão e à apologia, é útil "coisificar" Deus (tratá-lo por Princípio, Fonte, Vida etc), mas o Cristianismo não abandona Sua faceta relacional e, portanto, pessoal. Assim, não vejo como ou por que isentar Deus das responsabilidades de um agente moral inteligente, a menos que o tratemos exclusivamente como "coisa".
Para falarmos do pecado (e associados) de forma menos vaga, parece-me necessário um referencial Universal (que se aplique a todos os agentes morais, humanos ou divinos) e Constante (não sujeito a flutuações ou arbitragens livres) para determinarmos o desejável (a lei, a virtude) e o contrário (o crime, o pecado). Daí, deveríamos compreender o que está em jogo quando a lei é violada, o que se busca atingir com a justiça e, portanto, por mais quais meios se faz uma restituição. (Assim penso eu, não sei se vocês concordam.)
Ah, e por último, Pedro Issa, questiono a noção cristã do "sacrifício". Estamos falando de sacer (lt. santo, sagrado) + faciō (lt. fazer, tornar?), sem qualquer apelo emocional ou mobilização de gratidão? Ou tratamos de um prejuízo imediato e Irreversível para facultar um benefício posterior e Compensatório (como no xadrez)?
Um aspecto não exclui o outro, mas o segundo não se sustenta pelo fato de Jesus ter ressuscitado (revertido o prejuízo, descaracterizando o "sacrifício"). Assim, com o primeiro apenas, resta-nos encarar a Paixão de Cristo de forma fria e racional: um mero procedimento que, embora doloroso, é bastante suportável e talvez até motivado.
Boa tarde para vocês!
Gibran, tudo certo?
ExcluirPor um lado, realmente, acho que o post se tornou pretexto para argumentar a veracidade do evangelho, e essa não é bem a proposta. Por outro lado, nenhuma discussão filosófica é impertinente aqui. A única coisa que pode acontecer, como é o caso agora, é que seus interlocutores não se sintam talhados ou dispostos a continuar a discussão nesses termos.
Eu renunciei a 'refletir' sobre o evangelho nesse tom filosófico. Há cristãos que fazem isso de bom grado, mas não é o meu caso. É o caso de um dos membros do blog, mas não o meu. Houve um tempo em que eu me deleitei com isso. Foi antes da minha conversão. Desde então eu entendi que não posso submeter DEUS a um microscópio e submetê-lo aos critérios científicos da minha razão. Então eu parei.
E essa é a única coisa que eu gostaria de encerrar comentando. Você me parece partir de um pressuposto, bastante consciente, de que tudo aquilo que foge à racionalidade humana é uma farsa. Tudo que não se explica pela razão - ou experimentação, talvez - está no âmbito das crenças e valores, e portanto são pessoais, subjetivos, e sem qualquer lastro com a realidade. Quase um delírio.
Alguma vez você, questionador por excelência, já questionou esse pressuposto?
Esse é um fundamento historicamente datado, não é algo natural nem óbvio. Não é 'evidente' que a razão humana é o critério de definição do real e averiguação da verdade. É uma proposta filosófica. Uma proposta da qual o Cristianismo não compartilha. E nem por isso é menos racional. Ser racional não implica ser racionalista. O Cristão jamais diria que tudo no mundo, inclusive a lógica divina, é explicável racionalmente. O que ele diria é que, de tudo o que a razão pode conhecer, o Cristianismo oferece as respostas mais racionais e sensatas.
Você tem horror ao mistério. Mas quem foi que definiu que não pode haver mistério no mundo? Eu não votei para que fosse assim. Desde quando se estabeleceu que o homem pleno e valoroso é aquele que busca por seu intelecto entender todo o universo? Quem postulou que o mistério é abominável só porque é algo que não pode ser conhecido? (Posição altamente irracional, diga-se de passagem.. tudo o que não posso conhecer pela razão é irracional e indesejável).
Eu questiono as exigências de um pleno racionalismo no lidar com o mundo. Os hebreus, de onde vem o Cristianismo, são um povo biblicamente muito, mas muito mais preocupados com o CORAÇÃO do que com a MENTE. Os hebreus não argumentam a existência de Deus, ela vem pela conversão do coração. Isso não é assinar atestado de ignorância. Isso é simplesmente aceitar um pressuposto diferente do racionalismo. Aceitar que existem coisas inexplicáveis pela pífia razão humana, e que nem por isso essas coisas são menos reais e menos verdadeiras.
Não se esqueça disso: o racionalismo é uma proposta filosófica, não é a verdade. O Cristianismo não compartilha dela, por isso sua decepção quando tenta argumentar com Cristãos. Saiba que, em alguma medida, ela é recíproca, porque o diálogo se estabelece em um terreno inóspito para os cristãos. A mim, interessa discutir qual o melhor terreno para discussão antes de entrarmos nela.
De novo, há pessoas que podem levar adiante a discussão nesses termos. Sou eu quem renuncio.
Sua participação é valiosa Gibran, muito obrigado.
Abraço!
Tudo beleza, Pedro. E por aí?
ExcluirEstimulante a questão de se questionar o racionalismo, não a desprezarei. Aceitando sua posição e também buscando encerrar o assunto, gostaria apenas de me deixar mais claro.
Não tenho horror ao mistério. A maior parte das coisas é e continuará sendo mistério para mim. Minhas desconfianças não são exclusivamente racionais. Você se focou no racionalismo, mas eu usei o termo "racional" só duas vezes, de forma pouco central.
Não desconsidero o "coração" (a intuição e as emoções, naturalmente humanas, difíceis ou mesmo impossíveis de expurgar da nossa razão). E é considerando isso que desconfio do contraste entre a lida com o "sagrado" e com tudo o mais.
Um aspecto do contraste é a submissão de tantas coisas seculares à nossa razão (nosso desejo de Entendimento, nossa preocupação com a veracidade das bases de nossas escolhas), enquanto o "sagrado" é abduzido daí, quase por conveniência.
Você citou o mundo e o universo (enfim, "coisas"), mas meus questionamentos são sobre Deus (como ser pessoal e inteligente) e os elementos de sua relação conosco (por exemplo, as noções de justiça e pecado).
Outro aspecto do contraste é este: Deus ser tratado como "coisa", e não questionado como Pessoa (se é que o é). Ele já não "cabe" na nossa razão, mas também é insensível a avaliações de bases emocionais e/ou intuitivas, desencorajadas e cuja recepção/resposta geralmente tende a um embotamento emocional. Ou, pelo menos, assim me parece.
Assim, vemos traços intensamente definidores da nossa humanidade (razão, intuição, emoção) serem "negados" na arena da decisão pelo Deus cristão ou contra Ele. O que resta? O "espiritual", que carece urgentemente de definição, para nossa consideração?
E antes fosse um assunto inócuo, trivial, mas não é. Por um lado, podemos considerá-la uma questão de "vida ou morte" (eternas?). Por outro, podemos vê-la como coletiva, já que crenças informam ações que podem afetar a outrem.
Tenho opiniões (em formação, admito) sobre "Deus", o evangelho etc: não sou o tipo que nega isso ou aquilo, mas o que questiona. Por esses motivos e outros, apenas sublinho aqui minha divergência de que o Cristianismo é nossa opção humanamente mais racional e sensata.
Bom restinho de domingo para vocês e boa semana!
Aceito abandonar as questões mais detalhadas do filme para pensar mais em como as pessoas recebem seu conteúdo. Dentro disso, continuo a defender: a revolução, para ser de fato uma revolução, precisa ter um projeto. "Projeto" aqui não significa uma construção ideológica político-econômica de uma sociedade futura a ser implantada, mas sim o que termo significa mesmo: o projetar de si mesmo uma concepção, ainda que muito vaga, de futuro, que difere, ao menos em alguns pontos essenciais, com o presente. Creio que a forma como eu penso revolução se encaixa no que o Bruno colocou sobre a Revolução Francesa acima. Sem falar que, além de todo o contexto intelectual francês do século XVIII, temos que, pelo menos, considerar o impacto da Guerra de Independência Americana nas mentalidades, tanto Europa quanto da América.
ResponderExcluirIsso tudo pra dizer o seguinte: para mim, os "indignados" que colocam a máscara do V não possuem um tal projeto. Não temos nada para afirmar que eles desejem uma sociedade socialista ou algo do tipo. Eles simplesmente estão revoltados, seja com a corrupção na política (principalmente no Brasil), seja com o chamado popularmente "capitalismo selvagem". Mesmo nesse último caso, ninguém deixa de pensar em uma sociedade democrática, mas defende-se uma preferência a políticas eminentemente sociais do que a econômicas. Isso em si nada tem de revolucionário. É, antes, algo plenamente possível em uma democracia.
Por fim, acho que nós temos de ter cuidado em não sair descartando a leitura de certos autores simplesmente porque podem ser (ou são) de esquerda, pois senão caímos na mesma atitude da esquerda radical: não se discute argumentos, mas sim as bases de construção do argumento (ou seja, quem é o autor de uma tese, qual o contexto sócio-político que o influenciou e coisas do tipo). É essencial que nós não caiamos nessa tentação. Temos que discutir os argumentos pelos argumentos,e ler os autores livremente. Eles sempre podem ter algo a nos oferecer.
Pedro, tudo bem?
ExcluirOlha, no fundo é tudo uma questão de definir o que se entende por revolução. E aparentemente nós discordamos. Você insiste que é preciso um projeto. Eu digo que nunca houve projeto na Revolução Francesa. Você diz que o projeto não é um modelo, mas uma perspectiva muito vaga de mudança. Então eu digo que tudo é uma revolução, até uma passeata.
Mas isso me importa pouco. Não sou teórico político nem pretendo sê-lo, sinto-me apenas na obrigação de questionar alguns modelos de revolução que nos são consagrados. Para mim importa muito mais que existe uma mobilização sendo feita em nome da vingança, independente do nome que demos a ela.
Abraços!
Fala, xará.
ExcluirÓ, dois pontos:
Primeiro - Obviamente nem toda passeata é uma revolução. Por quê? Porque o projeto revolucionário não é simplesmente uma perspectiva vaga de mudança, mas o ter uma concepção de um futuro alterado, em que algum ponto ESSENCIAL da sociedade presente é completamente transformado ou destruído. Isso é de suma importância, porque a diferencia de qualquer movimento político corriqueiro. Por exemplo: se eu fizer uma passeata dizendo que no futuro a corrupção deve desaparecer do Estado, não há nada de revolucionário aí. Ao contrário, esse é um pressuposto da ordem democrática. Agora, se eu inicio um movimento afirmando que deve-se destruir os poderes executivo e legislativo, em favor de um monopólio do judiciário, aí eu tenho um projeto revolucionário. Se ele se concretizar, será uma revolução.
Segundo - Tendo cada vez mais agora a pensar que quanto às pessoas que se utilizam da figura do V trata-se de indignação e de revolta. Hoje tive um exemplo disse: o Jornal Hoje fez uma reportagem sobre uma manifestação de funcionários da extinta empresa aérea Webjet, cobrando sua recontratação pela Gol, que absorveu a falida. Não deu outra: contei pelo menos três pessoas com a máscara do Guy Fawkes. O que isso significa? Não pretendo dar respostas conclusivas para o que eu acho que merece estudo muito mais aprofundado. Contudo, parece-me cada vez mais que as pessoas buscam no V essa figura de revolta popular contra a injustiça por parte das instituições. Os trabalhadores na reportagem (que, como notei e disse para a Carol, pareciam ser todos de classe média ou média-alta) não queriam se vingar da Gol. Apenas estavam reclamando uma solução que consideravam justa, diferente da injustiça que para eles é perder o emprego por causa de uma transação financeira.
Abraços!