sábado, 18 de maio de 2013

Ego, o trabalho do crítico e do artista

Apesar de nem todos se lembrarem do seu nome no filme, todos lembram do papel de Anton Ego em Ratatouille: ele é o implacável crítico gastronômico enfrentado pelos heróis cozinheiros.

Conhecemos um pouco mais da sua trajetória apenas no final do filme, portanto, posso estragar o final da película para alguém que ainda não tenha assistido. Quando criança, Ego experimentava o amor da mãe através dos pratos que ela lhe oferecia, ele encontrava um prazer simples mas verdadeiro nessas refeições sem grandes sofisticações que eram servidas pela família. De alguma forma, ele cresce para se tornar um crítico exigente, quase impossível de satisfazer. O filme não fala nada a respeito do seu processo de tranformação, primeiro, porque eles sabiamente decidiram que isso poderia ser muito chato e, depois, porque todo mundo conhece um pouco como essas coisas se dão. Mesmo com todas essas advertências em contrário, arrisco-me com uma descrição: tudo começa com o amor à boa comida, que o leva ao interesse em falar sobre ela, sua paixão pelo assunto faz aflorar uma habilidade com o texto, essa habilidade lhe rende elogios que, quando repetidos, levam-no gradativamente a acreditar não somente que ele é um bom crítico mas um privilegiado, membro de um grupo muito restrito de connoisseurs.

Tentando continuar a desvendá-lo, percebemos que o nome da personagem é certamente outra pista sobre a natureza da sua personalidade. A forma como se relaciona com os protagonistas parece ser seu modo padrão de comportamento, ou seja, aos outros demonstra inimizade e superioridade, afeição é algo reservado apenas a si mesmo e ao seu renome. Ele mesmo reconhece isso: "de certa forma, o trabalho de um crítico é fácil. Nos arriscamos pouco e temos prazer em avaliar com superioridade os que nos submetem seu trabalho e reputação. Ganhamos fama com críticas negativas que são divertidas de escrever e de ler."

Amar somente a si mesmo é um comportamento que Agostinho chama de orgulho, um vício muito comum e, em sua opinião, o pior de todos. Orgulho é esse amor próprio que está sempre em competição com todos os outros egos concorrentes e cujo prêmio, no final, é o poder. George Orwell, num registro muito mais sombrio, coloca uma das melhores descrições desse mal na boca de O'Brien, personagem de 1984.
‘Como um homem demonstra seu poder sobre outro, Winston?’
Winston pensou. ‘Fazendo com que ele sofra’ ele disse.
‘Exatamente. Fazendo com que ele sofra. (...) O poder está em inflingir dor e humilhação.
O mal de Anton Ego não é como o de O'Brien em escala mas certamente o é em natureza. Todos os elementos descritos acima fazem parte do comportamento do crítico gastronômico de Ratatouille. Primeiramente, há a ridicularização das vítimas de suas críticas; na própria forma como Ego é desenhado, podemos enxergar essa característica: sua fisionomia sempre mantém uma aparência de desdém e superioridade, não importa se está zangado ou impaciente. Outro ponto importante é o desprezo pelo lema de Gusteau, "qualquer um pode cozinhar", o que não é uma surpresa já que ele fere o princípio fundamental do orgulho: para que haja privilégio, devem haver privados; como alguém pode sentir-se acima dos outros sem que ele acredite que possui algo que foi negado aos demais? Finalmente, como já mencionamos, há a inimizade constante em relação a qualquer um que não seja ele próprio, como o vício impulsiona o orgulhoso a tentar colocar-se acima de todos com quem se relaciona, não resta outro relacionamento possível que não a hostilidade. Ego é, portanto, um exemplo perfeito de homem orgulhoso.

Mas uma mudança radical acontece quando ele experimenta a ratatouille servida por Remy. Os males causados por seu ego se revertem e Ego recupera o prazer simples que ele experimentava quando criança – o prato, inclusive, é o mesmo. O orgulho, vício fundamental do cristianismo, é combatido pelo que cremos ser o fim supremo do homem: a alegria; o catecismo escocês diz que o principal fim do homem é ‘glorificar e alegrar-se em Deus para sempre’. C. S. Lewis descreve episódios parecidos em sua autobiografia e também chama a sensação de "Alegria". Ela é definida por Lewis como uma pontada de beleza, algo tão sublime que nos faz querer alcançar uma coisa ainda mais alta, a experiência é como um vislumbre do divino que deixa aquele que a experimentou sedento por mais. Ele se sente assim quando lê pela primeira vez Phantastes de George MacDonald. Perceba a semelhança com a experiência transformadora de Ego no trecho a seguir, em que Lewis desrcreve a ocasião da leitura:

É como se eu tivesse sido carregado através da fronteira enquanto dormia ou como se eu tivesse morrido no velho país e nunca pudesse me lembrar como eu cheguei vivo ao novo (...) Mesmo quando nuvens ou árvores reais haviam sido o material da visão [de Alegria], elas haviam tido esse papel apenas por lembrar-me de outro mundo; e eu não tinha gostado do retorno ao nosso. Mas dessa vez eu havia visto a sombra fulgurante saindo do livro para o mundo real e ficando ali, transformando todas as coisas comuns e, ainda assim, permanecendo a mesma.
Mas não é apenas o refinado crítico que tem seu ego confrontado no filme, seu vício não atinge apenas os abastados, os parentes de Remy sofrem do mesmo problema na extremidade oposta. Para eles, a comida não é lugar para arte ou beleza e o gosto de Remy coloca a situação da família em jogo, todos olham com desconfiança para o hobby e para as companhias do pequeno chef. Enquanto a defesa da simplicidade é um movimento arriscado para Ego, a aceitação da gastronomia sofisticada de Remy é uma ameaça à reputação de seu pai e sua família. O crítico vive focado no renome, brincando com seu poder de colocar aqueles que se submetem à sua avaliação no grupo dos aceitos ou dos rejeitados mas a família de roedores também teme a rejeição que pode advir do hobby de Remy, a ânsia de estar no círculo dos aceitos – e, melhor ainda, no dos privilegiados, como Ego – é uma falha que não está ausente na família. Mais ainda, a incompreensão entre os dois grupos é mútua mesmo que os vícios de ambos os lados sejam parecidos.

Na ratatouille de Remy, porém, ambos os problemas se resolvem. O filme tem uma daquelas bonitas conclusões da Pixar em que a família de Remy, após aceitar seu jeito diferente de tratar a comida, colhe os frutos dessa aceitação, enquanto Anton, acaba por descobrir a verdadeira alegria de viver apenas quando é forçado a abandonar a crítica, a reputação e principalmente o ego; ele investe num pequeno bistrô, abraçando a sua verdadeira paixão: a arte da comida.

Encerro com sua última crítica no filme, muito bonita:

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