Hoje, há poucos temas que tenham tornado-se tão delicados quanto
a moral. Salvo em circunstâncias especiais, admite-se que toquemos
nesse assunto apenas indiretamente, raramente como o tema principal
de livros ou conversas. E, caso realmente tragamos o assunto à tona, se for em forma de livro, recebe o rótulo de auto-ajuda e, se amigo numa roda de papo, a alcunha de moralista.
Mas, como dito acima, em algumas circunstâncias especiais,
podemos tratá-la sem problemas. Dois campos têm essa permissão: as
teorias sociais e as ciências. Tudo bem que as duas nem sempre levem
a sério o que a outra diz, mas, tratando o assunto de forma mais
geral, podemos dizer que essas duas áreas têm o respeito de muita
gente – basta assistir ao noticiário para ver quantas vezes a tevê
não chama esses profissionais para dar uma credibilidade extra a
alguma afirmação. No campo das teorias sociais, a moral pode ser
tratada, por exemplo, pelo marxismo, que explica que a ganância
competitiva nas empresas é uma consequência do sistema capitalista
ou pela sociologia, que explica que as injustiças sofridas pelas
mulheres são resultado da cultura patriarcal que ainda nos cerca. Já nas ciências, a
abordagem é, como convém, um pouco mais concreta, com medições,
exames de sangue e saliva. Elas explicam que a maior agressividade
dos homens é causada pela testosterona e que traços como uma
melancolia pessimista podem ser motivadas pela falta ou excesso de
algum neurotransmissor.
Apesar do saudável debate ocorrendo nas ciências e teorias
sociais, acredito que um tipo diferente de discussão moral não tem
recebido a devida atenção de todos, a sabedoria. Sim, pois
me parece que nem a sociologia nem a psicologia evolutiva ajudam
tanto quanto gostaríamos na hora em que precisamos, digamos, saber
como lidar com a morte de alguém próximo – mesmo que, talvez, sejam
as únicas ferramentas necessárias a alguns Quincas Borbas e
Sheldons Coopers. Vejo isso o tempo todo, as pessoas podem ter lido
numa revista que o perdão traz benefícios ao corpo, mas praticá-lo
com propriedade está infinitamente distante de conhecer seus
benefícios à fisiologia. Quando devemos falar e quando devemos
ficar quietos? Quando devemos oferecer ajuda e quando devemos deixar
que o outro cresça por si mesmo? Quando devemos escolher a coragem e
quando a paciência? São questões com que eu trombei em inúmeras
conversas e que raramente vejo impressas ou discutidas seriamente. No
entanto, minha definição de sabedoria talvez ainda esteja muito
vaga. O que tenho em mente é algo como a retórica dos antigos, a
sabedoria tão fora de moda praticada por gente como Quintiliano ou
Sêneca. O que advogo é o direito de alguém escrever sobre moral,
sem ser necessariamente teórico ou científico.
Porém, alguém talvez possa dizer que isso não é necessário,
que o conhecimento mais acadêmico pode ajudar com todas as questões
difíceis da vida sem o menor problema. Até certo ponto, concordo.
No próprio exemplo dado acima, o da morte, poderíamos dizer que uma pessoa irreligiosa encontra
conforto na ideia do materialismo, influenciada pelas descobertas da ciência, defendida por inúmeros pensadores das Humanidades e que diz que a morte do corpo é apenas o fim, somos
apenas matéria, "imagine there's no heaven (...) no hell below
us"¹, como sugere o John Lennon. Mesmo que ele encontre consolo real ali, ainda acho que haja espaço para uma sabedoria não-teórica. Até porque o
discurso de sabedoria que defendo aqui não seria apenas uma voz que discorda da ciência ou
das teorias sociais, muitas vezes o sábio e o teórico podem
concordar. Deixo o G. K. Chesterton, no seu estilo combativo
habitual, explicar melhor o que eu quero dizer:
Perceber-se-á que a velha eloquência agora é evitada – não tanto porque era artificial quanto porque era real. A retórica não desagradava os homens porque o seu estilo era ornado, mas porque o seu sentimento era simples. Acontece que a retórica tem um modo atraente de colocar verdades muito claras ²
Chesterton coloca bem o problema. Os sábios da Antiguidade não
diziam verdades inéditas, mas diziam-nas com um sentimento claro,
pertinente ao momento, quase como profetas, repetindo as velhas
virtudes, denunciando os vícios do povo ou dos poderosos.
Mas sem conseguir encontrá-la no âmbito "sério", as
pessoas procuram essa sabedoria simples da retórica clássica em
outros lugares. Ela tem permissão, por exemplo, para estar na arte
porque esta pode ser tomada como uma expressão de subjetividade, sem
pretensão de verdade. Robert McKee diz que "Tradicionalmente a
humanidade procurou a resposta para a pergunta de Aristóteles nas
quatro sabedorias – filosofia, ciência, religião, arte –
tirando luz de cada uma para montar um sentido de acordo com o qual
possamos viver. (...) E à medida que nossa fé nas ideologias
tradicionais diminui, voltamo-nos para a fonte em que ainda
acreditamos: a arte da história.". ³
Mas procurar respostas na arte certamente não é a pior das
consequências da marginalização da sabedoria. Um gênero preencheu
essas lacunas mais que todos os outros: a auto-ajuda. Ali, os
preconceitos que impedem que os conselhos morais cheguem aos círculos
mais prestigiados não atuam, os autores de auto-ajuda não estão
preocupados com sua reputação junto à elite intelectual. Ela
funciona de acordo com a lógica do mercado, ela simplesmente anuncia
um bem – a ajuda com algum problema – e as vantagens em
adquiri-lo – a rapidez ou a eficácia com que o problema será
solucionado. Não que eu ache que as leis de mercado sejam
inerentemente ruins, elas vêm apenas sanar um problema que deveria
ter sido tratado por algo mais competente, como uma mãe que
terceiriza a educação dos filhos.
Por isso, quando alguém fala seriamente em moral pode ouvir que
está só propagando auto-ajuda. Mas esse não é o único rótulo
possível. Outro muito comum e cuja resposta demoraria pelo menos
outra postagem inteira é a acusação de intolerância. Alguém pode
dizer que a moral é relativa e que dar conselhos morais com
pretensão de verdade como faziam os antigos pode tornar-se uma forma
de opressão. Eu discordo por inúmeras razões, mas para não me
alongar, posso dizer apenas que não estou sozinho. Hoje, na
academia, não é tão comum quanto se pensa dizer que a moral está
totalmente no âmbito da escolha pessoal, como vemos nesse trecho
de um curso do professor Shapiro, da universidade de Yale. Cada vez menos acadêmicos acreditam no relativismo moral.
Portanto, se, na academia, voltou-se a acreditar que existem
verdades morais e voltou-se a debater a respeito de quais seriam
elas, esse tipo de conversa precisa chegar até as pessoas. A arte
continua oferecendo-nos grande consolo e ensinamento, e a ciência
dá-nos subsídios sólidos para algumas das discussões, mas ainda
há lugar, na verdade necessidade, de um discurso claro que dê
conselhos sábios sobre como lidar com as nossas dores e como
responder à pergunta que Aristóteles fez na Ética: "como
devemos viver?"
1 - "imagine que não há Céu (...) nenhum inferno abaixo de nós", traduzido do inglês.
2 - The Rhetoric of the Peacemongers, The Illustrated London News, 13 de outubro, 1917.
3 - Story, p. 11-12. Traduzido do inglês.
1 - "imagine que não há Céu (...) nenhum inferno abaixo de nós", traduzido do inglês.
2 - The Rhetoric of the Peacemongers, The Illustrated London News, 13 de outubro, 1917.
3 - Story, p. 11-12. Traduzido do inglês.
Leandro e membros do blog,
ResponderExcluirMuito interessante o ponto de vista, e infelizmente tenho que concordar, basta uma pessoa falar sobre ética, moral, sentimentalismo, religião, entre outros assuntos de incontável importância, para o indivíduo ser taxado como ignorante, chato, e até homossexual. Ainda bem que existem pessoas que ainda procuram por ensinamentos morais, e que não se satisfazem com uma “gelada" e uma partida de futebol (evento que como tem sido noticiado, tem sido exemplo da carência de ética pelo qual passamos).
Grato,
Andrew Ryan.
Pois é, espero que a moral possa voltar às nossas discussões, mantendo, claro, aqueles cuidados que temos de ter sempre: sermos consistentes e respeitosos. Muito obrigado pela visita, Andrew!
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