sábado, 11 de maio de 2013

Pensando sobre a Revolução Americana


Recentemente o Pedro me questionou sobre a Revolução Americana, o conflito que se iniciou em 1776 e fez surgir os Estados Unidos da América.

Pedro me perguntou a pergunta óbvia: Isso que os americanos fizeram em 1776 foi uma Revolução realmente?  Como pode não ter sido, se esses revolucionários americanos criaram algo radicalmente novo – a primeira República moderna – e foram influenciados pelos iluministas franceses?

É uma ótima pergunta. Chamar o processo que fez surgir os Estados Unidos de “revolução” significa ligá-lo automaticamente aos dois maiores exemplos de revolução da História: a Revolução Francesa, de 1789, e a Revolução Russa, de 1917. Essas duas revoluções foram profundamente anti-cristãs, tanto na prática quanto na teoria.

A resposta dessa questão é muito importante para o cristão pensante. O cristianismo precisa saber o que pensar sobre revoluções políticas. Afinal, se os americanos fizeram uma revolução, no mesmo sentido dessas outras que citei, o pensamento político cristão deve no mínimo vê-los de maneira cética. E, como sabemos, os EUA são um grande centro do protestantismo mundial, e os protestantes americanos veem positivamente os ideais de seu próprio país.

Propus-me, então, a tentar responder a pergunta do Pedro por meio deste blog. Eu estou persuadido de que a Revolução America não foi uma revolução no sentido da comum acepção do termo. Esse nome "Revolução Americana" é uma figura retórica apenas. Esse é o ponto que irei defender.

Disclaimer: As ideias apresentadas aqui são reflexões apenas, e não conclusivas.  Se você gosta do assunto, por favor, ponha na mesa a discussão. 

*


1776. Durante todo o processo de guerra contra a Inglaterra, e estabelecimento da nascente República, os revolucionários americanos refletiram continuamente sobre o que estavam protagonizando, especialmente em The Federalist Papers, nos próprios debates para formulação da constituição, e em um sem número de panfletos que circularam pelas colônias inglesas na América às vésperas da Revolução. Em The Federalist escrevem Alexander Hamilton, John Jay e Jay Adams, defendendo a necessidade do estabelecimento de um governo central para governar as antigas colônias. Nos debates da constituição, vê-se a figura proeminente de Thomas Jefferson, o pai dos Estados Unidos, o pai da República, um homem cujo pensamento se tornou hegemônico nos anos seguintes. E nos panfletos que antecederam ao conflito armado, pastores, autores menores e entusiastas convocaram os colonos à luta e viveram a exaltação contagiante da luta contra o poder e contra a opressão.

Evidentemente, um bom caminho para analisar o que esses homens estavam fazendo é saber o que pensavam e o que achavam do estavam fazendo. 

Era consenso no pensamento político de matriz britânica do século XVIII – graças principalmente a John Locke e os Commonwealth Man, gente como John Milton, e o Earl de Shaftsbury  – a ideia de que, em algum momento longínquo da história, quando os homens viviam num estado de natureza, livre e sem governo, ao perceberem as paixões e a violência que os homens cometem entre si, optaram por sentar e fazer um acordo: instituir uma autoridade que garantiria a preservação do direito de cada um à liberdade sobre si mesmo e sobre seus bens. Assim, a função do governo civil, no dizer dessa teoria política, é apenas um comprometimento com cada indivíduo em particular, por meio do qual o indivíduo abre mão de exercer ele mesmo a justiça para ver realizada numa autoridade central a garantia da preservação dos direitos de liberdade e da propriedade. Nesse sentido, a sociedade não é a realização mística do corpo divino, ou uma união sacra e misteriosa instituída por Deus, mas somente um acordo, feito com o consentimento de todos os homens, para que haja uma única autoridade responsável por garantir direitos e proteger os indivíduos. Esse tipo de pensamento político era dominante na Inglaterra, e estava estipulado na famosa Bill of Rights de 1689. Esse tipo de teoria política estava em pleno vigor na Inglaterra e em suas possessões coloniais também.

É claro que a constituição britânica não criava esses direitos, ela os reconhecia. Para os americanos, para os ingleses – e para qualquer um que cresse nos mesmos princípios políticos – eles eram universais, válidos para todo homem e em qualquer lugar do planeta. A Bill of Rights apenas garantia a verdade de que o governo inglês estava comprometido com eles, e que isso o tornava o próprio governo legítimo, senão deveria ser este mesmo governo derrubado.

Os colonos americanos foram gestados nesse tipo de pensamento. Não só no liberalismo político em geral, mas em particular afinidade com os Commonwealth Men. Estes homens, verdadeiros reformistas, defendiam a liberdade de culto dos protestantes que não fossem anglicanos, sufrágio masculino universal, e até mesmo a instituição de uma República (o que, em si, não é nada de assustador para um povo que vivera o fenômeno Oliver Cromwell).

Portanto, os colonos viviam há tempos embebidos nessa teoria política e sob os privilégios da própria constituição britânica, legislada pela Bill of Rights. Viam-se como parte da Commonwealth assim como todos os outros que viviam além do oceano, embora, porém, para esses colonos americanos a ideia do governo como garantidor de direitos era mais significativa ainda, pois muitos haviam fugido para a América procurando a liberdade religiosa que lhes foi podada na própria Inglaterra. Ou seja: num colono americano a ideia de liberdade era mais vívida, real e palpável do que para um inglês, um “reinol” que se ocupava também das questões da monarquia, do parlamento, da experiência adquirida por séculos de nação britânica, ou da tradição como um todo.

Aqui entra uma questão fundamental para começarmos a julgar o que foi a Revolução Americana: a idéia de tradição. Pois toda Revolução se ergue na contramão da tradição, rasga-a em farrapos, tem horror a esse corpo de experiência coletiva acumulado ao longo do tempo, lenta e gradualmente, sem o auxílio de nenhum intelectual mágico. Revoluções trituram tradições.

Mas na América não havia tradição. Nunca houve batalha de Hastings na América. Nem João sem Terra. Nem as cruzadas. A Igreja Anglicana não dava suas caras por lá, nem o parlamento. Toda essa história jazia há léguas e léguas de oceano, muitos cresciam ouvindo-a sem nunca terem sequer visto a Europa. O que havia na América era a colônia, seu único diferencial era ser regida pelo próprio modo político britânico.

“Ora”, diz-me o Pedro, “e os 200 anos de história colonial? Isso não tem valor? Ser colônia não é também uma tradição?”. Decidir se há tradição ou não é muito importante quando se pensa em Revolução.

Eu diria que a tradição colonial é algo frágil. Enquanto metrópole, gestar colonos como os colonos americanos é algo perigoso. Nesse sentido, é compreensível o medo que os portugueses tinham das ideias iluministas chegarem à colônia brasileira. A parca civilização colonial não significa muita coisa para um pensador liberal, um commonwealth man, uma espécie de bon vivant das ideias políticas, que respira a noção de direitos, de liberdade, de república. Ele vibra com ela, é um humanista cívico, um sujeito cheio de amor pela virtude, um namorador da boa política, da civilização humana, e que tem medo da natureza corrompida do poder. Após ficarem independentes, por exemplo, os americanos vão logo perceber que não tinham nada e precisavam criar tudo. Todo o século XIX e a conquista do Oeste será o século de “criação” dos Estados Unidos da América. A colônia americana era pífia sobre qualquer exame civilizacional sério. Isso é bem diferente de tradição. Burke, o gran maestre conservador, quando invoca a tradição inglesa, fala justamente dessas coisas que falei: batalha de Hastings, conquista Normanda, João sem Terra, Magna Carta. Isso sim é tradição. Ele tão bem sabia disso que, conservador que era, apoiou a independência das colônias, pois cria que elas deveriam desenvolver sua própria história. Tradição é uma conquista civilizacional, algo que precisa ser cuidado e preservado para não se perder (dirá Burke). Uns povoados costeiros irrelevantes não são a mesma coisa que tradição.

Talvez até seja, para quem está meio acomodado na cadeira. Mas quando o rei inglês fica “abusado”, as coisas vão ficando sérias. Por isso eu disse: é algo frágil. Ninguém irá evocar a tradição colonial para evitar entrar em conflito armado contra a Inglaterra. Muito rapidamente os americanos vão perceber que, se eles não são ingleses, não são nada ainda.

Primeira bandeira americana: as treze estrelas
representam as treze colônias
Pois eis que as pretensões imperiais inglesas e o elevado custo com guerras recaem enormemente sobre as colônias americanas em forma de impostos e fiscalizações. O rei inglês começa “a abusar” da colônia (não dá para contar toda a história aqui). Em quase todo lugar essa história é contada como o estopim da declaração de independência das colônias americanas (fala-se da festa do chá de Boston, e tudo o mais). Isso é verdadeiro. O primeiro Congresso da Filadélfia, por exemplo, não é separatista. Os colonos vão à Inglaterra reivindicar direitos, e são rechaçados. Quando o rei aumenta sua exploração da colônia, ele entra em conflito direto tanto com a ideia de commonwealth já gestada e desenvolvida na América, quanto com a própria ideia de liberdade que seu país outrora inseriu nos viajantes que se instalaram na América. Ele simplesmente mostrou aos americanos que a América era realmente um lugar diferente, e não era Inglaterra. Os americanos vão construindo seu raciocínio a partir disso. A Revolução é gestada durante o conflito, ela não é produto de nenhum grande teórico que projetou tudo de cima de sua escrivaninha, ou que elaborou uma Enciclopédia explicando o funcionamento da humanidade a partir da ciência. A idéia de América vai surgindo conforme o confronto vai se delineando, e a luta por um ideal de liberdade em que não há poder central opressor vai contagiando as mentes americanas. Não houve nenhum teórico da Revolução.  Aliás, como eu mostrarei mais para frente, os homens que citei, Jefferson, os irmãos Adams, Hamilton, Jay, Washington, não eram intelectuais no sentido que entendemos hoje. Eram homens de negócios, políticos, administradores, juristas, governantes, pessoas com um senso muito prático da vida real, e não cientistas da agência humana.

Desses desentendimentos e desses conflitos, portanto, começa a surgir na colônia uma espécie de reavivamento político pautado pelo medo da tirania e da opressão. Isso é muito significativo. A guerra contra a Inglaterra será decidida, no limite, por pequenas milícias formadas por cidadãos comuns, ordinários. Isso está no germe da cultura americana até hoje: as pequenas associações, as comunidades locais, o direito de portar armas, e uma desconfiança absurda com qualquer governo ou poder instituído. A coisa que um americano médio caipira mais odeia é um homem do governo batendo a sua porta. Isso está no espírito popular da guerra de independência. O espírito reformista que agita os colonos é extremamente idealista: libertar o indivíduo da opressão política. Gestados na tradição dos direitos de liberdade, com um nível de educação acima da média (panfletos, panfletos, e mais panfletos, jornais, artigos, em cidades e vilas) os colonos se veem como oprimidos, e com sua liberdade em risco por causa do rei que não era honesto e coerente com seus princípios. A nação inglesa traíra a colônia, dizem os americanos. Os colonos viam um risco real de perder a liberdade. Bernard Bailyn fala de “medos reais, ansiedades reais”, a crença em uma conspiração contra a liberdade, oriunda da corrupção do espírito humano pela detenção de poder, e que ocorria no mundo inteiro, sendo o conflito na América um pequeno capítulo desse problema. Há uma “liberdade contagiante” (também diz Bailyn) que agita a colônia.

Não faltam estudos sobre a maneira como essas idéias se popularizam de maneira singular nas colônias (aliás, não faltam estudos sobre nada da Revolução Americana). Eles giram em torno dos hábitos de leitura mesmo, da divulgação do pensamento americano pela panfletagem, pelos discursos públicos, e coisas assim. Há uma absorção popular do medo da opressão e da tirania.

Às armas, guiados pelo Exército Continental de George Washington, os colonos sofrem perdas enormes inicialmente, mas articulam-se bem com o território, convocam milícias populares e conquistam inclusive ajuda militar francesa. A guerra é vencida na captura de um exército inglês em Yorktown, em 1781, e os derrotados ingleses reconhecem a separação americana em 1783.

Batalha de Camden, 1780.
E o que acontece a partir daí? Como surgem os Estados Unidos? (Continua...)

2 comentários:

  1. Bruno, permita-me agradecer, antes de mais nada. Agradecer por alguns esclarecimentos sobre a questão e por haver escrito, provavelmente, o texto mais encomiástico sobre a Revolução(?) Americana desde o século XIX, digno de invejar os maiores próceres do episódio!

    Algumas coisas ainda me incomodam.

    Entendo que a revolta dos americanos seja em nome de direitos que eles pensavam inalienáveis, e que esses direitos deveriam ser garantidos pelo estado. Quando isso não acontece, a revolta parece natural, e naturalmente conservadora (no próprio sentido do verbo).

    Mas não consigo deixar de pensar que a instituição de uma República é um elemento revolucionário. O que é que explica que eles tenham optado por uma república ao invés de uma monarquia, senão um ato revolucionário? A república não era um mandato da experiência nem um dado da revelação histórica. Você diz que eles foram gestados por ideais lockenos. Lembremos que a obra de Locke terá influência, ainda que pequena, no iluminismo francês que desembocará na Revolução Francesa. Não consigo ver como a opção pela república pode ser um ato conservador. Nem sei se é necessário que seja. Talvez seja mais produtivo afirmar este caráter inovativo da Independência do que insistir em resguardar uma coerência teórica. É só uma hipótese.

    Outra recomendação minha seria atentar para o termo Revolução. No vocabulário astronômico ele significava retorno, e por algum tempo terá o mesmo significado na política. É só a partir da Revolução Americana e Francesa que ganha sentido de ruptura. É preciso investigar os porquês disso. É preciso entender como os 'revolucionários' entendiam o termo revolução, e como os historiadores fazem o mesmo. Isso é importante até para podermos definir os termos de nosso debate: continuaremos a chamar os revoltosos de revolucionários, e a revolta de revolução?

    Além disso, pergunto-me se essa visão de recomeço não é precisamente utópica, e por isso revolucionária. A resposta para isso depende do momento em que isso passou a ser enxergado, penso. Se se pensou que a América era o território do recomeço e isso motivou a revolta, então temos um forte elemento revolucionário. Se essa visão é decorrente da independência, então é só uma constatação ingênua.

    (continua)

    ResponderExcluir

  2. Por fim, me parece que uma importante característica que você salienta na mentalidade revolucionária é a de criar direitos e projetar uma sociedade. Nisso a França teria passado por uma revolução, mas não os EUA. Mas se fizermos um comparativo sumário da Declaração de Independência dos EUA e da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, na França, veremos uma semelhança muito grande, e que versa justamente sobre a garantia de elementos existentes, e não a tentativa de criá-los ou projetá-los:

    “um estatuto de diferenciação e igualdade ao qual as Leis da Natureza e do Deus da Natureza lhe conferem direito, o respeito que é devido perante as opiniões da Humanidade exige que esse povo declare as razões que o impelem à separação.”

    “tendo em vista que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos, resolveram declarar solenemente os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”

    *

    “Consideramos estas verdades por si mesmo evidentes, que todos os homens são criados iguais, sendo-lhes conferidos pelo seu Criador certos Direitos inalienáveis, entre os quais se contam a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade.”

    Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
    Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão.

    *

    “Que para garantir estes Direitos, são instituídos Governos entre os Homens, derivando os seus justos poderes do consentimento dos governados. “

    “Art. 3º. O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que dela não emane expressamente.
    Art. 15º. A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração.
    Art. 16.º A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.”


    Assim, me parece que se a Revolução Americana não foi Revolução, tampouco o foi a Revolução Francesa. Em nenhum dos dois existe um desejo de criar direitos do nada, nem uma sociedade nova. Talvez isso tenha acontecido a partir dos jacobinos, cujo novo calendário é a epítome do espírito revolucionário. Contudo, até 1792 esse não parece ser o espírito dominante por esses critérios.

    Abraços!

    ResponderExcluir