domingo, 5 de maio de 2013

Contra uma Visão Deflacionária do Homem: A Questão da Maioridade Penal


Redução da maioridade penal. Eis o problema. Ou seria a solução?

O debate vem se arrastando ao limite da exaustão e do insupotável. O facebook já mal tolera a peleja de fotos, discursos, discussões e informações a respeito do tópico. De um lado, pesa a indignação contra os crimes nauseantes que testemunhamos com infeliz regularidade. De outro, o raivoso ceticismo quanto à eficácia do recurso jurídico.

O debate irrompeu novamente, e com força, após o indiferente latrocínio de Victor Hugo Deppman e o repulsivo e ignóbil assassinato da dentista Cinthya de Souza. Os fatos são conhecidos o suficiente para não termos que manchar com eles as páginas deste blog.

O que tenho visto, contudo, é uma avalanche de argumentos que mal arranham a epiderme do problema. Os defensores da redução apontam os crimes pavorosos e o temor paranoico, ainda que justificado, de sua reincidência aleatória. Os opositores alegam que as transgressões são consequência ululante do descaso governamental com a educação e com o sistema carcerário.

A fim de ilustrar, visto a camisa dos indignados. É um absurdo! Um descaso com a vida! É evidente que com 16 anos já se está bem crescidinho para saber o que faz, e por isso deve pagar! Deve apodrecer na cadeia um marginal desses, que é pra aprender!

Banco agora a defensoria. De nada adianta mandar um moleque de dezesseis anos para a cadeia. Olhe a condição de nosso sistema carcerário! É óbvio que aquilo é uma fábrica de criminosos! Só vai piorar a situação! O que precisa ser feito é investir na educação de qualidade e na dignidade do professor. É muito fácil para o estado mandar pra cadeia quem comete crimes, mas ele não dá nenhuma chance pra esses criminosos terem uma vida honrada!

Só que não. A questão me parece ser bem mais complexa.

*

É preciso analisar com acuidade os princípios abstrusos por detrás da ardorosa rejeição à redução da maioridade penal. Para tanto, é imperativo localizar a rede causal dos sobreditos crimes. Em outras palavras, devemos responder à pergunta: por que esses crimes foram cometidos?

Os contraditores da redução informam que as causas dos delitos se reduzem, basicamente, ao pauperismo da educação brasileira e à horripilante condição do sistema de detenção do país. Sanados esses problemas com louvor, as atrocidades do abril nefasto não se repetiriam na sociedade. Uma educação aguçada, instrutiva e de qualidade, aliada a um aparato de correção dos infratores revestido de honradez e humanidade, tornaria vã a propositura de se reduzir a maioridade penal. Adolescentes bem educados e malfeitores reeducados certamente não hão de cometer crimes dessa estirpe. Se eles hoje ocorrem, é por negligência governamental. A solução final, portanto? Um aprimoramento, por parte do estado, no setor mais básico da experiência civil: a educação, o que abarca também a reeducação.

Aprofundemos agora o problema. Que tipo de homem e de humanidade está pressuposto nesses argumentos? Um homem fundamentalmente plástico, capaz de ser moldado pelas circunstâncias onde ambula. Um homem sujeito e submisso aos ditames culturais em que vagueia. Mais ainda: um homem em boa medida determinado pelo ambiente em que vive. Assim, o garoto de periferia que se entrega às investidas de seu entorno, aos vetores que o tragam para a execução da criminalidade, aquele que se deixa levar pelas tristes ocasiões de sua realidade, que cede aos desígnios de seu meio ambiente, este garoto é retratado como uma vítima notória de uma sociedade que é uma vergonha para si mesma. Afinal, o que se espera de uma gestação cujo útero é a criminalidade, senão o parto de um criminoso? A sociedade é que merece as vaias por dar à luz pessoas de tal feição. Como um filho, imagem e semelhança de seus pais, assim o transgressor, espelho de uma sociedade saturnina. 

O ser humano, portanto, é um produto. Ele é o que a sociedade faz dele. Se temos um criminoso diante de nós, a culpa deve ser imputada à sociedade. E é dela, naturalmente, que se deve exigir as ações transformadoras. É o estado que deve garantir os bons estudos das crianças e a recuperação dos bandidos. Enfatizo a cosmovisão por detrás dessas proposições: o homem é o que dele se faz, para o bem ou para o mal. A pergunta que fica a ser respondida: o homem não é, assim, responsável por suas ações?

Aqui começa a sutileza. A posição esmiuçada até aqui transfere a responsabilidade dos atos infratores: do indivíduo executor para o estado gestor. Se o homem se abrevia a um produto social, seus atos se resumem a parcos reflexos de sua educação e seu espaço de experiência. O problema estaria na educação – ou na reeducação – e o responsável por ela deve ser o governo. Essa lógica nos intima a crer, portanto, que a culpa é do governo, incapaz de cumprir as demandas sociais com lisura. Dessa sorte, quando um membro do governo propõe que a maioridade penal deve ser reduzida, ele aponta os falsos culpados. Deveria ele mesmo assumir a falta dos crimes devido a sua incompetência administrativa ou embuste político. Feito isso, deveria tratar de exercer com eficácia sua função: corrigir a sociedade para evitar o recurso dos delitos!

É um problema, em seu ótimo, ontológico. Ou, no mínimo, antropológico. Pressupõe-se que o homem será o que dele se fizer, e que nele não há maldade – ou, quiçá, nem mesmo bondade – autônoma. Se ele produz o mal é porque a sociedade o induziu a tanto, logo, ele não deve ser responsabilizado. O ônus recai, evidentemente, sobre o estado.

*

Não acredito nessa visão simplista, mecanicista, determinista e materialista de homem. Ela é de uma pobreza tal que eu me sinto tentado a convidar seus defensores ao suicídio, depressiva que se afigura essa perspectiva antropológica. (Não me espanta, por sinal, que metade – ou mais! – da Faculdade de Filosofia da USP faça uso de antidepressivos chumbantes. Eu também os usaria se considerasse o homem com essa carência e indigência de espírito.)

É evidente que os contraditores da rejeição não assumem que enxergam o homem dessa forma. Alguns porque são, eles mesmos, inconscientes do fato. Mas todos eles, diante de seus próprios pressupostos, preferem negá-los do que revê-los. Querem manter seus argumentos negando suas premissas. Faz parte da blindagem irracional que seu ódio contra “o sistema” – o culpado de tudo! tudo mesmo! – requer. O grosso dos expoentes dessa visão se assumem enquanto esquerdistas. Por esquerdismo quero dizer, neste caso específico, um defensor de qualquer dos muitos matizes do marxismo. A verdade inconveniente é que o próprio marxismo requer um determinismo social. Um determinismo intransponível, por sinal, devido ao poder das ideologias. Da mesma forma, esses militantes são, em sua esmagadora maioria, evolucionistas, e mal se conscientizam do determinismo necessário que a teoria da evolução implica.


Digam o que quiserem, reconheçam se forem honestos: são deterministas. A causa da maldade está na sociedade, o culpado é o governo, e o homem não pode ser responsabilizado por seus crimes.

Mas há uma exceção. Nem todos os homens podem ser escusados de suas infrações. Existe um tipo bem específico de homem que deve arcar com todas as consequências de seus atos: o cruel e desumano homem burguês. Falando em termos mais latos, o rico, o que teve uma boa educação, o que jamais passou necessidades, o que nunca sofreu as agruras da periferia. Afinal, que motivo teria ele para cometer um assassinato? Ele não sabe o que é sofrer! Fosse ele um pobre garoto de rua, que comeu o pão que o Diabo (??) amassou, então ele estaria justificado. “Culpa do governo, que não educa e exige educação!” Mas um bon vivant? Este optou pelo crime, e é responsável por ele. Não o estado, mas ele! O indivíduo! O resultado é extremamente curioso: o indivíduo provido de bons recursos, boa educação e boa família, este deve ser responsabilizado por seus atos. Seu antípoda, o pobre, de educação lastimável e família invertebrada, este não pode ser responsabilizado por seus atos. Ele tem uma “licença social” para ser como é. Não passa de uma vítima e um produto de um sistema que o estado conduz e alimenta. Rompe-se aqui sua própria lógica determinista. Só interessa bradar o determinismo quando se faz oposição “ao sistema”, quando se pode culpá-lo pelas decisões humanas. 

Sim, eu acredito nas decisões humanas. Não penso que um garoto de periferia que se mantém íntegro havendo nascido em um mundo de promiscuidade moral, que o adolescente que resiste às investidas de seu entorno que o arrastam para os crimes hediondos, seja um milagre. Isso seria santificar a simples virtude como ato hercúleo e legitimar a torpe maldade como inércia. Não. Ele não é um milagre, é o produto de suas escolhas.


*

Aprecio o ser humano o suficiente para entendê-lo como um agente. Não contemplo o homem como o produto de uma rede causal socialmente determinada, e por isso não me inclino a culpar o governo por suas ações. Dito de forma parmenidiana: o responsável pelo crime é o responsável pelo crime. A maldade que deflagra a infração é fruto da escolha de um homem, um indivíduo em sua inteireza e profundidade civil, psicológica, ontológica e espiritual. Qualquer posição que rejeite essa afirmação acarreta em uma visão deflacionária de homem que me parece altamente casmurra e deplorável. 

É evidente que existem problemas no sistema educacional e carcerário do país. É inquestionável que esses rombos carecem de urgente solução. Concordo que o ambiente em que uma criança se desenvolve é elemento fundacional na gestação de seu caráter. É justamente por isso que defendo os valores familiares tradicionais. Mas estas são questões independentes. O que é intragável, sobremaneira, é a desoneração da responsabilidade criminal dos homens, precisamente pelo fato de que são o que são: homens

8 comentários:

  1. Explicação clara, definitiva. Parabens Pedro.

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  2. Como você entende a influência da família na formação do ser humano? Entendo que a influência externa faz parte da formação do ser. Concordo que a maioria dos que culpam a falta de educação estão culpando o sistema ou o governo, principalmente se o argumento for o da falta de educação oficial (letramento conforme os padrões do sistema educacional). No entanto, educação é mais do que isso, não é? Estou de pleno acordo que o ser humano deve ser responsabilizado, julgado e punido como ser humano responsável, caso contrário ninguém seria responsabilizado por nada, em último caso jogando a culpa em Adão e, talvez, no próprio Deus que deixou que nos tornássemos o que somos. Mas acredito na influência externa e que parte, somente parte, do problema poderia ser amenizado, e somente amenizado, com educação (educação de verdade, que não está nos livros). Como sei que você entende a importância dos valores da família, sei que entenderá o que estou dizendo. Só quis colocar isso, porque apesar de entender suas motivações para escrever o que escreveu,e concordar com elas, pode parecer que o ser humano é fruto de suas próprias escolhas e nada mais, e que essas escolhas foram totalmente livres, como se todo ser humano nascesse com uma "ficha zerada", sem que o seu ambiente e até seus genes exercesse também uma influência.

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    1. Sim Caio, estou de acordo.

      Eu quis enfatizar dois pontos com o post. Primeiramente, que é mandatório conceder ao homem uma ontologia libertária (em seu sentido metafísico, não político). É preciso garantir que o homem seja visto como um ser capaz de tomar decisões e fazer escolhas, e não como uma criatura que se move pelo cabresto da sociedade. Em segundo lugar, procurei defender a responsabilização dos homens pelas escolhas que fazem e atitudes que executam. Isso me parece bastante bíblico. Independentemente de nossa teologia, somos responsáveis pelas nossas ações, inclusive pela escolha da descrença.

      Agora, em nenhum momento quis dizer que as escolhas do homem são imaculadas de influências externas. É isso, como disse, que me faz defender os valores tradicionais da família.

      Como eu entendo a influência da família? Eu concederia plena liberdade para a família educar seu filho em todos os aspectos, se assim desejasse. Moralmente, espiritualmente, epistemologicamente, creio que a família tem condições de oferecer o que a criança precisa. Entre todas, biblicamente, a mais importante me parece ser a instrução na Palavra de Deus, útil para todas as outras (2Tm 3:16).

      A minha dificuldade é com o inverso dessa pergunta: como eu entendo a influência do estado na formação do ser humano? Aqui eu tenho grandes dificuldades. Curiosamente, essa deveria ser a verdadeira preocupação dos homens. É uma ensandecida inversão que as pessoas se preocupem com as famílias que educam plenamente seu filho em casa, não vendo qualquer problema em atribuir essa tarefa ao estado. Quem é o estado para educar meu filho? Até onde ele pode ir? Como saber o que ele ensina? Como garantir qualidade e idoneidade? Vejo muitos problemas nisso, e eu não tenho qualquer resposta no momento!

      Abraços! Obrigado por participar, Caio :)

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  3. Caro Pedro de Oliveira, desculpe a confusão na postagem do comentário - achei que o texto tinha outra autoria. De qualquer maneira, adaptando um pouco o que eu tinha escrito - num debate no facebook com outra pessoa que eu supunha autor -, segue aqui minha crítica ao seu texto:

    Em primeiro lugar, me parece que seu argumento, parte de uma suposta "cosmovisão cristã" (ainda que ao mesmo tempo racionalista) esquecendo-se de alguns passos importantes que a própria Reforma e os movimentos cristãos que a sucederam apontaram. Por exemplo: sua visão sobre a responsabilidade individual é tão forte que entra em confronto com a própria necessidade de salvação da alma por mérito ou incidência divina (me refiro a controvérsia Calvinismo x Arminianismo).

    Nesse sentido, vc parece esquecer coisas que a literatura expressa melhor do que o Direito sobre a alma humana, a respeito de como as condições sociais e econômicas injustas podem afetar a disposição "humana" ou sua "condição espiritual", levando muita gente ao crime. Creio que é Vitor Hugo quem tem a melhor expressão sobre isso: Jean Valjean não era "mal" por natureza, mas um ladrão por condição da ocasião - embora isso acabe afetando todas as suas relações e a própria imagem que tem de si.

    Aprofundando este ponto, rebato suas críticas ao marxismo - ou pelo menos parte dela, não defendo aqui nem falo por todos os marxistas - no mesmo sentido em que vc a põe: vc parece mais comprometido em defender seus argumentos supostamente racionais, do que em assumir que pode estar errado e revê-los. Digo isso porque me parece que vc deposita muito mais sua fé no Estado e no indivíduo do que mesmo os marxistas mais exacerbados. Explico: muitos marxistas querem negar que alguém "seja" mal. Eles querem ver a maldade somente como condição social construída. Essa não é minha posição - nem a de todos os marxistas, recomendo a leitura de "On Evil", livro recente de Terry Eagleton nesse sentido.

    Eu compreendo que, algumas pessoas, simplesmente "são más". O mal é exatamente aquilo que é incompreensível, mas precisa ser reconhecido. Eu não tenho dúvida de que é preciso punir pessoas pela sua maldade - se abrirmos mão de reconhecer o mal, vamos abrir mão de qualquer possibilidade ética. Nisso, creio que concordo com vc. Mas seu problema é, fudamentalmente, ver no Estado-técnico-burocrático-racional-atual, esse Beremoth (versão piorada do LeviatÃ) que nos cerca, a entidade mítica capaz de fazer isso. Daí, penso, para fazer isso vc precisa fechar os olhos para partidos políticos, classes sociais, instituições falidas, grupos de extermínio, e toda a realidade a sua volta, para afirmar uma crença "racional" na punição do homem "neutro", "médio": vc precisa acreditar no indivíduo, sujeito de direitos, como uma absoluto. É nisso que nos separamos teoricamente.

    Se me permite, divulgo aqui minha contribuição pela não revisão - ou se quer discussão pública - sobre a maioridade penal, no atual estado da arte, do direito e da tragédia política brasileira: http://marcusviniciusmatos.wordpress.com/2013/05/15/perversidade-justica-para-todos-mas-punicao-para-alguns/

    Um abraço!

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    1. Obrigado pela contribuição! Não há do que se desculpar.

      Bom, eu tentarei esclarecer algumas coisas aqui, e nesse processo acabarei contrariando algumas de suas ideias. Mas creio que o debate consiste justamente nisso, certo?

      Antes de mais nada, é fundamental um esclarecimento prévio: nossa cosmovisão não é cristã e racionalista, ela é cristã, e, em consequência, racional (v. menu "por que somos"). Há um buraco negro de diferença entre o racional e o racionalista. Não acreditamos que a razão é o critério de verificação e validade de todas as coisas, não acreditamos na potencialidade inquestionável das faculdades racionais, não confiamos nas conclusões indeléveis do intelecto humano. A razão não é o crivo da verdade. Não somos racionalistas. Mas nós somos racionais, i.e., acreditamos que nossas crenças tenham uma razoabilidade e racionalidade intrínsecas, justamente por serem verdadeiras.

      Eu realmente enfatizei a responsabilidade individual dos homens em relação a suas ações civis. Mas isso não tem qualquer implicação no âmbito espiritual. É uma falsa relação supor que, ao enfatizar a responsabilidade civil do homem, eu faço o mesmo na esfera espiritual. Os debates teológicos da reforma a respeito da graça não versaram sobre punição civil, e sim sobre salvação espiritual. Antes, tanto Calvino quanto Armínio jamais desoneraram os cidadãos de se submeterem aos ditames da lei civil.

      Aprofundo, para meros fins explicativos. Ambas as correntes concordam mais do que discordam, embora talvez jamais uma discordância tão franzina tenha sido tão ciclópica. Concordam, primeiramente, que a responsabilidade pela condenação do homem recai sobre o próprio homem. Os arminianos atribuem a escolha da condenação à rejeição da graça salvífica, um protocolo espiritual possível em função da graça preveniente que restaurou o estatuto ontológico pré-lapsariano do homem e restituiu a potencialidade de escolha (livre-arbítrio) que havia sido impugnada pelo pecado. Os calvinistas, por outro lado, responsabilizam o homem pela condenação a despeito do decreto de reprovação anterior à criação do mundo. Essa responsabilidade se deve (a) à revelação geral, isto é, a natureza, que proclama audivelmente a verdade da revelação específica, tornando os homens indesculpáveis (Rm 1) e (b) à inscrição da lei de Deus nos corações humanos, o que alguns, como Lewis, chamam de "lei natural", tornando todos os homens cônscios de suas ações. Ou seja, ainda que quiséssemos transportar o debate sobre as responsabilidades humanas (o que não é o caso, e nem vejo como poderia sê-lo), os reformados estariam deste lado. O pecado estaria para o crime assim como a condenação estaria para a penalidade.

      Calvinistas e arminianos concordam também que sem a graça de Deus não há salvação. Nesse sentido, para nenhum dos dois há mérito. Embora na refrega os calvinistas apontem penduricalhos teológicos pelagianos ou semi-pelagianos na obra de Armínio, os arminianos rejeitam este acinte. Dizem que sem a graça preveniente, que vem diretamente de Deus e que remove o véu dos corações humanos, nenhuma criatura pode ser salva. Antes, todas seriam condenadas pela depravação absoluta do homem e sua recusa congênita à submissão a Deus. Portanto, calvinistas e arminianos atribuem ao homem sua responsabilidade de condenação, e a Deus a causa eficiente de sua salvação. Mas que Deus seja responsável pela salvação dos homens em nada, absolutamente nada, diz respeito às obrigações civis dos cidadãos.

      Por isso entramos no segundo nível da discussão, este realmente relevante. (continua)

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    2. Um comentário preambular: você disse que "as condições sociais e econômicas injustas podem afetar a disposição 'humana' ou sua 'condição espiritual', levando muita gente ao crime." Não é que eu me "esqueça" esse fenômeno, é que eu não acredito nele. Não o encampo por ele não fazer parte de uma visão de mundo cristã. Você exemplificou dizendo que Jean Valjean não era "mal"[sic] por natureza, mas pela "ocasião". Não é assim que nós, cristãos, vemos o mundo. Valjean, acreditamos, era naturalmente mau. Todos os homens são naturalmente maus. "E o Senhor viu que a maldade do homem na terra era grande e que toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era continuamente má" (Gn 6:5), "(...)pois a imaginação do seu coração é má desde a infância" (Gn 8:21), "todos se desviaram; não há quem faça o bem, nem um sequer" (Rm 3:12; Sl 14:3) etc etc. Independentemente das condições sociais ou econômicas de um homem, ele é naturalmente mau. E não há qualquer possibilidade de que esses fatores exteriores alterem essa configuração. É impossível que transformações sociais ou econômicas transformem o homem de um ser mau em um ser bom. Essa 'condição' humana, como você disse, é inalterável a partir de vetores externos. E é precisamente a crença inversa que promove as revoluções e a engenharia social, certos que estão de que a redenção humana passa pela mudança da sociedade. Nós, ao contrário, cremos que essa mutação ontológica se dá somente por meio da submissão espiritual a Jesus Cristo. Assim, não é "a ocasião que faz o ladrão". A furtividade é congênita ao pecador, e a ocasião não é mais do que isso: uma ocasião para a manifestação dessa condição natural.

      O que eu não esqueço, nem tampouco ignoro, é a ingerência de fatores sócio-econômicos e culturais nas atitudes individuais. Isso é bastante trivial para ser rejeitado. Essa não é minha questão. Estou falando sobre responsabilização, e não explicação. Que um garoto tenha cometido um assassinato porque carecia de recursos porque oriundo de uma família pobre porque sem acesso à educação porque houve negligência do estado, isso eu me inclino a compreender em alguns casos. (Digo alguns porque, do contrário, cairíamos na abominação normativa da sociedade que eu denunciei, em que havendo boa educação jamais haverá crimes. Falso. Isso é um reducionismo antropológico, como expus no texto. Jamais aceitarei que o homem seja um mero produto de seu meio, e nisso penso estar de acordo com a Bíblia.) Mas disso não se segue, e este é o núcleo da porfia, que essa garoto não tenha responsabilidade(negrito) sobre suas ações.

      E isso me parece bastante bíblico. Adão buscou responsabilizar Eva pelo seu pecado. Nem por isso Deus deixou Adão impune. Explicações causais não desoneram a responsabilidade do homem. Em nenhuma passagem da Bíblia, que me conste, vemos os homens sendo desculpados de seu pecado em função das condições sociais. Qualquer que olhar para uma mulher com cobiça, já pecou. Isso é absolutamente independente de como as mulheres se vestem ou gesticulam. A responsabilidade é sempre do indivíduo que cometeu o pecado. Em nenhum lugar nas Escrituras somos redimidos de nossos pecados em função da conjuntura em que ele foi cometido. Nossa redenção vem somente pelo pagamento incondicional desse pecado, operado na cruz de Cristo.

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    3. Parêntesis. Não entendi por que você diz que eu pareço mais comprometido com meus argumentos do que disposto a assumir que posso estar errado. Essa é uma acusação grave em uma conversa. É uma indigesta denúncia de dogmatismo, que eu me inclino, infelizmente, a recusar. Em momento algum eu fechei o debate ou insinuei não estar aberto ao diálogo. Isso vai em franca contradição os princípios deste blog. Todavia, se qualquer discordância for tida como um signo de dogmatismo, então não serei eu quem estarei recusando o diálogo. Fecho parêntesis.

      Eu realmente gostaria de entender melhor em que sentido eu posso depositar muito mais fé no estado do que os próprios marxistas. Primeiramente, eu não deposito fé em nada, senão em Cristo. Essa não é uma afirmação banal. Não penso, como um libertário, que a individualidade seja a redenção da sociedade, nem como um marxista, que vê no estado a promoção de uma sociedade melhor. Não deposito fé no indivíduo, e muito, muito menos no estado. Pelo contrário: sou altamente desconfiado do estado. Não compreendi, literalmente, esse argumento.

      Quanto à segunda crítica, talvez eu tenha sido um pouco menos incompetente em compreender. Você parece dizer que eu me equivoco ao achar que o estado é capaz de reconhecer o mal e punir a sua fonte. É isso? Nunca pensei nesses termos, nem os vi dessa maneira. Se você concorda que deve haver punição, quem deve puni-lo, senão o estado? Havendo alternativas eu estou disposto a avaliá-las. Não pretendo que o estado seja o agente deliberador, isso seria contraditório a minhas ideias. Desejo que o estado seja um executor e ministrador da justiça civil, que é definida de forma democrática pelos cidadãos. O problema não é o estado executor, é o estado definidor.

      Comprometo-me a ler seu post, Marcus. Obrigado mais uma vez pela participação, você será sempre muito bem vindo!

      Abraços!

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